Pela confissão

-Hoje eu vim, não sei de quem tirei coragem. Não podia adiar por mais nenhum instante esta confissão.

-Repita-me vagarosamente o que acabou de contar-me.

-É tão cansativo, padre...

-Não posso ajudá-la na escolha das palavras, mas serei paciente na ausculta. Comece. Faça-me ouvir.

-Depois de mim há três velhas. Não quer atendê-las primeiro?

-Não! A vez é sua. Confissão não predetermina o tempo.

Não contive o choro. Vi-o quase desesperador. Cada palavra refeita e dita, um espinho que me furava o coração. O corpo ardia escondendo a mácula do desvirginamento. Possuía trinta anos, destes, vinte e dois de religiosidade, quase clausura. Quis me esquivar de falar e ouvi do Monsenhor Vandrini:

-Filha, ajude-me a ajudá-la. Comece sua confissão.

Meu rosto ainda se escondia entre as mãos, face a tanta dor emergida naquele instante. Notara que meu confessor não aprovava a demora. Mas era eu quem sabia mais de minha dor. Um tormento me abafava. Minha coragem era bem pouca para me apressar no que me pedia o padre. Relutei até onde pude. Fugi espiritualmente do espaço físico onde estava. Desejei inexistir, não ter queixas, nada me ter acontecido nada. Foi em vão. Acabei confessando tudo o que não devia ter feito.

-Minha filha, come é, vai ou não vai confessar-se?

-Vou!

-Então o que está a esperar? O tempo está fugindo de você. Há mais gente a querer o mesmo que você ainda não se decidiu fazer.

-Monsenhor..., eu fui desvirginada dentro da casa que pensava ser inviolável.

-No convento?

-Sim!

-Seu nome, como é?

-Louise.

-Você..., você... é uma lourinha, magrinha..., que canta no coral da capela?

-Sou. Por que me perguntou isso?

-Por nada. Apenas quis saber.

-Mas o senhor não me viu..., é estranho!

-Continue, Louise; o tempo é seu.Faça toda a sua confissão.

Dali em diante eu vi pelas brechas do confessionário a súbita mudança apresentada na face do Monsenhor. Vi-o indignado, talvez frente a tão horripilante confissão. Minha fala havia provocado seus sentimentos. Continuei. Não percebi mais a insistência de antes. Falava com ou sem pressa, sem que ele me estimulasse a continuar fazendo a seu modo.

-Você sempre dorme logo após o jantar?

-Não, aquele dia foi diferente. Nem jantei e fui logo para a cama. Irmã Izabel ainda foi até o quarto perguntar o porquê de eu não ter ido ao refeitório. Eu lhe disse que estava feliz e sem fome. Ouvi dela que, se era essa a verdade, ficaria feliz comigo. Comungava do mesmo sentimento. Continuasse o jejum noturno.

-O que você viu acontecer?

-O vulto falou que eu não me amedrontasse. Senti uma mão massageando meus cabelos. Estas mesmas andaram até meus seios, apertaram-nos e foi quando eu senti um frio intenso. Pedi a Deus que me livrasse de todos os males.

-Não desconfiou das mãos? De quem poderiam ser?

-Como? No convento só havia mulheres. Todas limpíssimas desses atos estranhos. O único homem que nos visitava era o senhor. Os dois vigilantes não tinham acesso ao nosso dormitório. Desconfiar de quê? Pensar que era quem?

O Monsenhor levantou-se da cadeira do confessionário e escondeu seu rosto entre as mãos. Nada entendi. Resolvi rezar enquanto ele se sentava. Mas já demoravam muito minhas orações e ele não se decidia pela continuidade do que fazia. Dirigi-lhe a palavra:

-Monsenhor, eu estou aqui. Esqueceu-se de minha confissão?

Ele atendeu. Notei que chorava. Passei então a envergonhar-me ainda mais. Pensei que minha confissão estava o incomodando muito. Cheguei a pedir-lhe desculpas.

-Eu sinto muito, padre. Mas é ao senhor que devo dizer essas coisas. Sinto muito mesmo.

-Não me peça desculpa nenhuma. Sua confissão me atinge.

-Não o entendi.

-Nunca atravessei a porta do seu dormitório. Aconteceu-me apenas essa vez. Estou preso ao pecado. Logo eu, o consultor espiritual de sua casa. Que mal lhe fiz!

-Padre, o senhor...

-Eu mesmo, em carne e osso.

-Por quê?

As mãos do pecador me chegaram macias, plumosas, e o meu corpo aceitou calmamente o pecado. Lembro-me de que minha respiração parou, eu me transportei à casa dos desejos e senti que meu corpo sorria. Não me visitou qualquer dor. Ele me acariciou, disse palavras belíssimas. Seu corpo era leve como uma pluma, sobre o meu. Eu o ajudei. Procurei confessar-me para galgar o perdão divino. Estava decidida a não contar o acontecido a mais ninguém.

-Louise, um vento me empurrou até seu corpo. Perdoe-me. Até aquele momento eu estava intocado como você. Duas marcas ficaram. O demônio me tentou e conseguiu que meus desejos falassem bem mais alto do que meu espírito até ali limpo dessas coisas. O que quer que eu faça? Procuro sua superiora?

-E foi o senhor?

-Ainda tem dúvidas?

-Monsenhor Vandrini?

-Eu!

-Não! Eu vim aqui apenas para lhe confessar meu pecado, e não para ouvir essas palavras. Não podem ser verdadeiras.

-Eu desvirginei você. Sou o seu pecado. Fiz o ilícito.

Os anos se passaram e dei tudo ao esquecimento. Ele me imitou. Freqüentei menos suas missas. Passei a ir aos domingos ao seminário das Salesianas logo ao lado do meu. Quis evitá-lo porque a minha religiosidade se soergueu e eu voltara a ser feliz.

Em mil novecentos e oitenta e sete, encontrei-o em um congresso da Congregação do Divino Amor. Cumprimentei-o, saudando-o:

-Viva a fé que há dentro do senhor.

-Você, para mim, é santíssima. Vergo o meu corpo agora, não para pecar, mas para admirá-la, quase no caminho da veneração.

-Não sou digna disso.

-É, Louise, a Maria que Jesus deixou para me provar e dar a retidão dos meus passos. Fizeram- me bispo. Você me ajudou a crescer espiritualmente.

-Bispo Vandrini, sua bênção.

-Deus a abençoe, Louise.

Ele me deu as costas e foi celebrar com os demais bispos no grande evento religioso do qual participávamos. Nunca mais o vi. Apenas acompanhei de longe sua caminhada espiritual. Diga-se, uma bela caminhada.

Hoje trabalho com jovens vítimas de estupro. Possuo um grupo grande delas. São quase trinta mulheres. Quando eu morrer e assim abrirem os meus pertences, saberão da minha história, para que o santo bispo tenha lembrado o seu grande valor de homem resignado. Até hoje, nós não conhecemos o calor de corpo algum. As lembranças são áulicas e nossa fé, uma imensa montanha de ferro. Levantamos de onde nunca houvera queda, mas sim, um deslize de dois corpos frágeis do mundo, mas fortes de Deus.