O triste narrador do conto

-Há um grande escândalo para acontecer?

-Quem te falou dele?

-Mamãe.

-O que ela te disse?

-Uma coisa estranha...

-Conta-me.

Nosso pai era o filho mais velho duma prole de quatro. Foi à Suíça estudar economia e música e retornou para São José da Laje. Havia agora um homem culto, intrigado com a exclusão social de um povo que, mesmo assim, parecia querer viver a seu jeito. Ele olhou aquele mesmo povo com os olhos da melodia de seu coração.

-Ele voltou e logo se casou com nossa mãe!

-Não! Demorou um pouco. Acho que um a dois anos. Talvez um pouco menos, talvez um pouco mais.

Quem engomava e passava as alvíssimas roupas dos fidalgos donos da Usina de vovô, sabe quem? Minha doce mãe. Enquanto movimentava os braços no laborão cotidiano, ele a admirava. Ela apenas escondia seu olhar reprimido dos olhos do outro olhar buscador do doutor João.

-Nossa mãe engomava? Era pobrezinha?

-Era, Duílio, nossa mãe era assim: simples como a natureza!

Não se passaram três meses e nosso pai se alvoroçou para ter mamãe. Às escondidas se encontraram tantas vezes, driblando os perigos dos preconceitos da cor e de outros tantos. Nossa mãe era uma linda mulata que, além de canela na cor, trazia seu cheiro n’alma simples, humilde, esplendorosamente romântica.

-Mamãe sofria?

-Muito. O mundo inteiro estava contra ela. Proibiram-no de tê-la, na sombra de um lindo silêncio de amor. Eles se amavam. Tinham duas lindas vozes. Ele tocava violão como ninguém. Seresteiro, amigo das estrelas e da lua. Amante das noites.

Só vim a saber dessa história toda, próximo à data do meu casamento com Tereza. Mamãe reuniu os filhos e nos passou sua história tintim por tintim, mostrando-nos algumas cartas feitas por ele, no início de sua paixão, quando enfrentou toda a família para ficar ao lado dela. Uma história forte, bonita.

Quando a cheia do rio Mundaú acabou com a cidade baixa arrancando até o galo do alto da Igreja Matriz, ele já havia falecido. Morreu novo, na flor da idade. Nosso pai era um boêmio audacioso. Viveu entre as cordas de um violão e a melodia da vida.

-E os Hai Cai?

-Vasculhando um baú antigo, eu e nossa irmã Eufrásia achamos um punhado farto deles. Alguns noutras línguas.

-E o escândalo, qual é?

Mamãe hoje vive à mercê dos limites que sua doença oferta. A memória mora tão longe dela! É barco a vagar. Soubemos, e é aqui onde mora o escândalo, que, quando nosso pai se apaixonou por nossa mãe, ela engravidou dele. Para não causar nenhum escândalo à época, jogaram a criança, nosso irmão, nos braços de pais adotivos, para os lados do Rio de Janeiro.

-Um quinto irmão?

-Exato.

-E o escândalo, hoje, qual é? Onde está?

-Um velhíssimo bilhete que nossa mãe havia escrito quando do brutal afastamento do nosso irmão desconhecido, mantido guardado entre páginas mofadas de um livro azul – um livro caixa, não sei de quem são as contas que guarda o silêncio.

-E o bilhete o que diz?

-Nele está escrito o nome dessa família adotiva, seu endereço no Rio de Janeiro e por quem a criança foi levada.

-Mas com tantos anos, esse endereço ainda é o mesmo?

-Não! Mas o escândalo não está nisso.

-E onde está?

-Hoje já sabemos quem é o nosso quinto irmão.

-Quem é?

-Nosso pior inimigo!

-Como?

-É ele, nada menos do que o doutor Arthur Libério.

-Não pode ser verdade...

Quando papai teve o pré-infarto, quase morto foi levado ao Rio de Janeiro. Ficou internado por longos trinta e seis dias. Quem o tratou foi esse monstro. Abdicou de cuidá-lo porque nós não podíamos pagar seus honorários. Papai ficou triste e apressou sua morte. Ele sempre dizia:

-Esse jovem médico parece com meu filho Dílson. Não canso de olhá-lo.

-Dílson, sou eu, caro leitor, agora desgovernado em lágrimas de lembranças. Meu irmão Arthur vive entre os delírios etílicos e o peso cruel das lembranças do passado. Faz exatos seis anos que ele soube da verdade e trinta e um que papai morreu. Depois disso, nunca mais se perdoou e vive nos deslimites profanos da vida humana.Sou pois o mais triste narrador que um conto pôde ter. Concordam?