Medo da Separação
Angústia. Medo. Sentimentos que eu nunca achei que sentiria tão nova, apenas 17 anos. Mas senti, e ainda estou sentindo. Essa dor é forte, aperta meu coração. Tenho que suportá-la, pois preciso ajudar as pessoas ao meu redor, que estão sentindo a mesma angústia que eu, pessoas que estão ao lado do caixão chorando, se perguntando como uma pessoa tão boa pode ter ido embora tão cedo.
Ao observar os rostos de todas as pessoas no velório, percebi que ninguém estava preparado para isso, que ao mesmo tempo em que travavam uma batalha interna se questionavam se deveriam se opor a Deus, dizendo que o ocorrido foi uma injustiça, Ou se devem guardar esses pensamentos para si mesmos e acreditar que na verdade já estava na hora daquela figura partir e ele fora em paz. Sentei-me na cadeira ao lado de minha avó e segurei sua mão. Meus olhos começaram a se encher de lágrimas conforme ela comentava como nossa família sempre fora unida, e como ela se apoiava nela nos momentos de maior necessidade. As lágrimas umedeciam meu rosto e já não conseguia pronunciar uma frase completa sem soluçar. Porque isso aconteceu, eu me perguntava, o que acontecerá com a minha família depois disso? As dúvidas que surgiam em minha cabeça eram muitas, mas eu me forçava a não deixa-las sair pela minha boca, causando mais sofrimento às minhas pessoas amadas.
Resolvi sair da sala, tentar escapar da tristeza, e sentei perto de minha tia, mas o clima não estava tão diferente do da sala. Ela também estava chorando, e resolvi ficar ao seu lado para ver se conseguia apoiá-la de alguma forma, mas como sempre, fui incapaz de falar alguma palavra de consolo. Durante todo esse tempo eu não consegui falar nada que pudesse ajudar alguém, apenas chorar ou ficar quieta olhando para algum lugar desconhecido por onde minha mente viajava. Olhei ao redor e percebi a grande quantidade de pessoas que estavam ali, conversando, recordando sua infância, sua adolescência e os momentos que compartilharam juntos. Que horas seriam? Eu estava ali desde as seis e meia da manhã, mas parecia muito mais. Minha cabeça estava pesada, havia dormido mal, tive vários pesadelos, e sentia como se não houvesse dormido nada.
Fui tirada de meus pensamentos quando reparei que todos estavam se levantando, e eu não estava entendendo o motivo até que o vi: o padre. Levantei imediatamente e segui junto com as outras pessoas para dentro da sala. Fui para perto de onde meus pais e avós estavam. Posicionei-me na frente do caixão. Quando parei, minha mãe apoiou seu braço no meu e apoiei meu outro braço no de meu avô. Quando me dei conta, minha mente estava viajando novamente. Estava me lembrando da última conversa que tive com ele, sobre o filme Speed Racer. Ele comentou comigo que levou seus dois filhos, meus primos no caso, no cinema para assistir e gostou muito. Concordei, pois também tinha adorado o filme. Comecei a me perguntar se essa teria sido mesmo a última conversa que tivemos, pois não conseguia me lembrar de nenhuma outra. Resolvi deixar que essa lembrança se tornasse a última, já que eu havia ficado feliz quando conversamos sobre esse assunto.
Meu rosto já estava molhado, e minha cabeça cada vez mais pesada. Fiz o possível para conter as lágrimas, mas estava muito difícil. Notei que meu braço não estava apenas apoiado no de meu avô, mas que ele o apertava sem perceber. Olhei para o outro lado e vi minha mãe e minha tia chorando. Estava cada vez mais difícil segurar as lágrimas, até que meu pai não agüentou: começou a chorar no ombro de minha mãe. Ele chorava tão fortemente que fez com mais lágrimas molhassem minhas bochechas. Tremia, mas fazia o possível para me manter em pé, e por isso comecei a prestar atenção ao que o padre dizia “... e sua alma foi em paz...". Um soluço e mais lágrimas. Quando isso iria acabar? Quando eu poderia voltar para casa, deitar em minha cama e esquecer de tudo isso? Cheguei à conclusão que prestar atenção no padre me faria desabar, por isso permiti que minha mente voltasse a vasculhar minhas lembranças. Lembrei-me que quando eu era pequena, ele brincava comigo, jogava videogame... Pensei nos meus primos, tão pequenos e já perderam o pai que adoravam tanto.
As pessoas começaram a sair da sala e minha me puxou para sairmos também. Meu outro tio veio e avisou que teriam que fechar o caixão e leva-lo. Concordei e tirei minha mãe e minha tia da sala antes que desabassem mais uma vez. Logo que saímos da sala, vi o caixão passar, sendo carregado por meus dois tios, meu pai e mais uma pessoa que não me recordo, pois a essa altura já estava chorando novamente. Como era de se esperar, eu não era a única; minha mãe derramava lágrimas em meu ombro e minha tia chorava abraçada a uma amiga ao meu lado. Tentei me acalmar, pare de chorar, eu pensava, e foi aí que percebi que essa tinha sido a última vez que o vi, e nunca mais o veria, apenas em minhas lembranças.
Meu pai apareceu e avisou que estava na hora de irmos para o crematório. Será que eu agüento mais isso? Será que eles também agüentam? Eu teria que agüentar, teria que ser forte, pois minha mãe precisava de mim, tanto quanto meus avós. Entrei no carro e minha mãe e minha avó começaram a conversar sobre o meu tio, de como ele estava bonito, com uma expressão alegre, apesar de seu trágico destino. Comecei a pensar se ele estaria feliz mesmo, e cheguei à conclusão que sim. Agora ele não sofreria mais por causa da doença, não ficaria depressivo por não poder fazer o que quisesse, e agora ele estaria livre. Esse pensamento me acalmou, mas logo pensei na saudade que sentiríamos dele, e mais lágrimas brotaram em meus olhos. Sequei-as rapidamente antes que alguém no carro visse.
“E a Sueli? Ela foi embora? Não a vi mais...” minha mãe continuava a conversar com meus avós. Eles pareciam mais calmos. Fiquei impressionada como minha avó foi forte e quase não chorou, e ainda por cima consolava os outros. Gostaria de ser que nem ela, pensei. Será que ela também conseguiu ser forte assim ao visitar meu tio no hospital? Provavelmente eu nunca teria a resposta para essa pergunta. Deveria ter ido visitá-lo no hospital? Uma dúvida que me amedronta até agora. Foi tudo tão rápido. No começo não fui porque acreditava que ele ficaria bem, até minha mãe me disse isso. Depois, a primeira parada cardíaca, e ele fora para a UTI. Fiquei assustada, com medo que ele não voltasse mais, mas também fiquei com medo de ir ao hospital, de vê-lo deitado naquela cama. Ele não sorriria a me ver, não abriria os olhos e não falaria nada, e eu ouviria apenas o silêncio. Não fui. Minha tia perguntou se eu gostaria de vê-lo e respondi que não sabia. Meu outro tio disse que eu não deveria ir, deveria apenas guardar uma lembrança bonita dele, e acreditei nisso, mas agora que tudo está acabado, que ele se foi, será que fiz a escolha certa? Não sei, e acho que nunca saberei, mas terei que viver com essa minha decisão.
Ainda estávamos no carro e a conversa prosseguia ao meu lado, mas agora meu avô tinha se juntado a ela. Falavam sobre o meu tio, mas não choravam. Acho que eu era a única que ainda chorava. E também tinha meu pai, que não estava chorando, mas estava quieto, sem falar nada. Provavelmente estaria sentindo a mesma tristeza que eu, pois somos muito parecidos; sempre quietos, nunca falamos o que estamos sentindo. Não sei se ele estava prestando atenção na conversa, mas acredito que ele estava bem longe, perdido em seus pensamentos, quaisquer fossem. Voltei para o mundo real e a conversa não havia terminado. O assunto do momento era a idade dos primos de minha mãe. Pelos menos eles estavam se distraindo, e isso era bom, mas tinha uma coisa que me intrigava: Eles não deveriam estar chorando ainda? Uma pessoa amada acabara de ir e nunca mais voltaria, e eles estavam discutindo idades! Eu sei que não deveria pensar dessa maneira, mas eu passava por um conflito interno, os dois lados gritando para que eu os aceitasse. De repente a imagem de meu tio veio à minha mente, ele no caixão. Eu o achei tão grande deitado ali, uma coisa que eu nunca havia reparado. Lembro de ter olhado para suas mãos e achado elas grandes. Certas coisas só reparam quando elas vão embora, e isso é muito triste.
“Estaciona ali, Mario.” ouvi meu avô dizendo. Havíamos chegado ao crematório. Ali seria o fim de tudo, nunca mais o veria. Estava pronta? Tudo ainda parecia tão irreal, apesar de tudo pelo que passei durante o velório. Eu ainda pensava que ao chegar à casa de minha avó e tocar a campainha, ele atenderia a porta, mas isso não mais aconteceria. Precisava acordar. Minha mãe precisa de mim, meus avós precisam de mim. Eu não posso ficar viajando no meu mundinho particular. Observei as pessoas chegando antes de sair do carro. Várias não tinham vindo, mas a quantidade que estava presente ali continuava a ser grande. Abri a porta e saí do carro. Senti o Sol queimar o meu rosto me deixando mais corada, e segui o fluxo de pessoas. Será que eu me acostumaria com isso algum dia? Não sei, terei que viver para descobrir.