Dinha, a inheca bosse...

Meu nome estava carregado de flores. Tantas morreram e mamãe resistia na esperança de ter uma filha, sua primeira, com o nome de Violeta. Flores ruíram, mas o jardim, sempre em pé sem se vergar ao tempo da espera cruel e inclemente ao seu desejo. Nascia eu tendo que vingar.

Mamãe fora a penúltima filha de uma prole de quatro. Da última gestação de vovó até ela pari-la, passaram-se vários anos. Quando eu já tinha nove anos é que vovó teve a última das quatro. De modo que crescemos, Clara e eu, quase como irmãs. Engraçado era que tia Clara me tinha como madrinha e, ao invés de pedir-lhe a bênção, era ela que o fazia. Obedecia-me cegamente a tal ponto de, já grandinha, ela me pedia autorização para se ausentar de casa até o jardim ou, no mais longe, até a calçada da rua.

Havia dentro de mim um apego excessivo por bonecas de pano. Tinha lindas bruxinhas silentes que meus braços sacolejavam com um verdadeiro carinho de mãe-menina. Minha tia e afilhada Clarinha, uma linda criatura que dividia comigo um teto familiar simples, também possuía esse amor pelas ditas bonecas. Admirava-as como eu, talvez até mais um pouco.

-Dinha, deixa eu ficar um pouquinho com a inhéca grande..., vai, deixa...

-Não senhora. Você vai rasgá-la ou sujar-lhe a roupa. Deixe-as quietas onde estão.

Eu negava de pés juntos. Meu ciúme não permitia a concessão daquele insistente pedido de tia Clara. Vezes sentia remorso mas não cedia. Um ciúme exagerado delas me proibia fazê-lo.

Um velho amigo da família, padrinho meu, senhor Horácio, presenteou-me outra vez com uma linda boneca com o corpo de celuloide e cabeça de porcelana. Uma boneca linda, fascinante. Quando a vi em meus braços, nem acreditei que era minha. Beijei-a, apertei-a carinhosamente e a pus sobre minha cômoda. Tia Clarinha a olhava com seus olhos pidonhos e eu nem lhe dava importância. Vivia me pedindo que a emprestasse para lhe encher a curiosidade. Insistia muito. Chorava, esperneava e eu não lhe atendia o pedido.

-Dinha, deixa eu pegar a inheca...

-Não! Ela está dormindo. Está cansada. Esqueça isso, menina.

-Tá não..., é mentira..., tá não..., deixa eu pegar nela, a bicinha...., tão miíta...

-Deixo não. Vá dormir.

Era sempre assim. Tia Clarinha me aperreava dia e noite para que lhe desse Penélope, minha boneca preferida. Por ser ela feita de celuloide, a punha longe do fogo. Esse material era inflamável; perigosamente inflamável. Uma faísca poderia destruir o seu corpinho inocente. Eu morria de medo que isso acontecesse. Redobrava os cuidados com ela.

Naquele dia não pude mais dar sustentação à negativa. Tia Clarinha tinha os olhos baços. Recuperava-se de uma gripe forte que a tinha deixado mais magra. Com os passos vagarosos, a voz pidonha e o mesmo pedido de sempre. Menina insistente.

-Dinha..., deixa eu pegar pelepe...

Sorri. O nome de Penélope em sua boquinha linda me fascinara. Cedi à sua vozinha linda. Pôde ter Penélope em seus braços enquanto eu fazia minhas tarefas do colégio. Distrai-me, confesso...

Lembro-me daquela sexta-feira de tristeza. O presente do padrinho Horácio havia completado um ano. Eu a guardava com o dobro do cuidado que tinha com as outras; e eram tantas elas. Senti um cheiro estranho de queimado. Estava tão entretida que nem me lembrei de tia Clarinha. Vi-a correndo ao meu encontro mostrando as mãos sujas de uma cinza escura. Senti um pavor...

-Que foi isso, menina?

-Dinha..., a inheca bosse...

Ah! meu Deus, foi só nesse instante que pude notar que o fogo havia mandado a celuloide de Penélope para os ares. Chorei bastante, apreensiva em como dizer ao padrinho Horácio o que acontecera ao seu lindo presente que ele havia me dado. Tia Clarinha se acocorou em um dos vértices da parede da sala e fez-se tão triste até a caída da noite, quando entendi que seu instinto materno ainda em criancinha lhe merecia outras bonecas nos braços.

Ela morreu quando tinha dezoito anos. Acho que era por isso que desejava tanto as minhas bonecas. Só desse jeito pôde ser mãe. Ainda hoje me arrependo de não lhe ter atendido aqueles pedidos feitos com tanto amor e insistência. Quando me pedia uma boneca, chegava a se vergar diante de mim, como se desejasse se ajoelhar para dar mais força a seu pedido. Seus olhinhos brilhavam querendo uma delas. Penélope, a melhor de todas, embora não a mais amada por mim, se evaporou dos seus braços. Depois daquele dia a presenteei com uma linda boneca de pano chamada Enaura. Esta foi bem cuidada por nós duas. Quando tia Clarinha morreu, Enaura foi o seu espólio deixado para mim. Quando a ponho nos braços, sinto tia Clarinha envivecida a pedir-me outras. Prometi a mim mesma que do mesmo jeito que mamãe esperou suas Violetas, eu não deixarei de doar Enauras para todas as que me sucederem familiarmente. Faço questão de me esforçar para manter viva a sucessão flórida de minhas Enauras.