A MANCHA
- Me passe o arroz, por favor.
Era a terceira vez que ela pedia. Olhou para todos em volta da mesa. Nenhum olhar retornou. Levantei-me e fui entregar-lhe o arroz. Um sorriso de agradecida insinuou-se-lhe tímido nos lábios. Um sorriso triste, como se lhe envergonhasse, ali, mostrar os dentes, e, mesmo assim, tivesse de fazê-lo.
À mesa, naquele dia, todos agiam diferente, como se os espaços incomodassem os movimentos mais expansivos e espontâneos. Conversavam pouco e noutro tom, como se pretendessem compor uma sinfonia cinza e densa, feita de um estranho silêncio.
Entreolhavam-se num pacto esquisito, a orquestrar os silêncios e a entrecortá-los pelos sons monocromáticos da sinfonia, de modo que o “me passe o arroz” da visitante soou desafinado, em desarmonia, dissonante e, por inopinado e inoportuno, talvez não se tenha feito notar.
Enquanto voltava ao meu lugar, tia Fausta me olhava como se eu tivesse cometido um malfeito. Não entendi. Sempre sou repreendido nos momentos em que me esquecem a gentileza ou a educação. Aquilo era algo para seus raros e forçados elogios, não para a costumeira espontaneidade de seu olhar glacial.
Voltei a comer, mas algo me puxava os olhos para aquela tímida mulher.
Suas roupas, seu falar sumindo, acanhado, como se devesse alguma coisa ao mundo, seus gestos curtos, medidos: a mão mirava a direção do copo, temerosa por não atingir o alvo e imprimir sobre a toalha branca e bem bordada uma mancha, que nunca seria de vinho tinto, mas uma mancha dela mesma, de sua presença naquela casa, de sua incômoda existência. Por vezes, eu tive a impressão de que parecia faltar nela mesma o querer existir. Na verdade, parecia ter-se acostumado ao não existir, existindo. Vez por outra, simulava querer entrar na parca conversa à mesa, derreter o gelo, mas tão poucas palavras denunciariam sua voz, seu sotaque, sua pouca instrução. Preferia apenas ouvir o silêncio que pairava suspenso por sobre algumas palavras que não lhe eram lançadas, mas, ao desviarem-se num vazio semântico despropositado, parecia voltarem-se contra ela.
Tia Fausta, que sempre fala muito com todos e de todos, naquele dia aparentava um sem jeito de conversar. Comunicava-se apenas com o utilitário da linguagem, não se deu ao luxo de suas literaturas. Pedia o feijão-de-corda, passava a carne, não reclamava da escola dos meninos, mas, como sempre, lançava-me desconfortáveis olhares ao menor sinal de gentileza que pudesse votar a visitante. Concluí que devia manter-me como os demais, sob pena de alguma repreensão mais severa.
Tia Maria calada comia. Sua participação na orquestra familiar era composta do mais denso silêncio. Um silêncio de desconforto, de desagrado. Imaginava-se lavando a toalha branca bordada, manchada de vinho tinto. Era o cúmulo! Retirar uma mancha daquelas estava acima de suas forças, embora quisesse esfregar, esfregar, esfregar... Até apagá-la em sua existência, de forma que ninguém fosse capaz de lembrar que um dia houve naquela toalha branca e bordada uma mancha de vinho tinto.
Meu pai era regido pela batuta de tia Fausta. Seu silêncio incomodava meus ouvidos mais íntimos. Suas esparsas palavras, quando lançadas ao ar, também me feriam, tanto mais me recusasse a admitir para mim mesmo sua atuação naquela música sinistra. Aquele homem que deu réguas aos meus pensamentos, compactuava para tornar mais incômodo o não-existir daquela estranha mulher.
Meu avô parecia surdo à música. Simplesmente comia como se fora um almoço de aniversário igual a tantos outros: a família reunida, um cardápio especial, a sensação de proximidade física que o fazia esquecer os desconfortos da idade.
Meus primos também pareciam indiferentes a tudo.
Tia Hortência olhava de soslaio para os regentes, à espera do sinal para sua participação. Entretanto, não parecia gostar muito de sua própria atuação. Talvez quisesse executar outra melodia. Nunca fora, todavia, de contrariar os demais. Era sempre melhor concordar!
Algo continuava a me puxar os olhos para aquela estranha mulher.
Lembrei-me da semana anterior, da primeira vez em que dela ouvi falar. Eu folheava um livro enquanto minha mãe bordava, em nossa pequena sala. Meu avô entrava com um ar intrigado e um telegrama na mão. Como era de pouca leitura, sempre esquecia os óculos em algum lugar, e pediu-me que lesse a mensagem recebida. “Farei visita seu aniversário abraço”. Quem assinava era uma Madalena.
- Quem será esta Madalena? – perguntou meu avô.
- Oxente, seu Osmar, não lembra, não? Tá ficando broco, é? – surpreendia-se minha mãe, com a agulha pendurada no canto da boca, enquanto acomodava a peça de tecido no bastidor.
- Ah!... Pois é, passou-me pelo sentido!
Dizendo isto, meu avô saía, e junto com ele também saía minha certeza das coisas. Indaguei, óbvio, a minha mãe sobre o assunto, e soube ali, naquele momento, de uma tia que morava numa cidade próxima, de quem nunca ouvira falar, filha bastarda de meu avô, e que viria ao seu almoço de aniversário.
Ao longo da semana conversavam todos aos murmúrios. Sempre que eu entrava em qualquer cômodo da casa, alguma frase se via atravessada por um comentário sobre a louça, ou a faxina, ou uma cena de novela, que não parecia relacionar-se com o sentido inicial do que se enunciava. Algo semelhante a um ensaio para a execução que seria feita ao almoço.
E o almoço prosseguia longo. Até que a mulher, vencendo uma luta íntima, perguntou ao meu avô se tia Fausta viajaria naquele dia para a capital, pois era caminho e poderia pegar uma carona. Entre um bocado e outro de feijão-de-corda, meu avô respondia que sim, mas, enquanto este concordava com a cabeça, tia Fausta, em tom de “sinto muito”, comunicava que o carro iria cheio. Além de meu pai, que seria o motorista, e dos meus dois primos, tia Hortência precisava ir também, pois teria uma consulta médica marcada para aquele dia, consulta inadiável da qual soube naquele exato momento e com a qual tia Hortência parecia, de súbito, preocupada.
A mulher, cedendo à situação, resignou-se. Pegaria o ônibus que passaria às 14h.
O almoço prosseguiu densamente silencioso.
Assim que terminou de comer, a mulher despediu-se.
Senti uma incômoda e dolorosa angústia quando ela se aproximou de mim, deu-me um beijo no rosto, sorriu e olhou-me profundamente dentro dos olhos. Um olhar tenro e carinhoso que me machucou a alma.
Jorge Henrique
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