O Pião
Lá estava ele, Gomes, como era conhecido em um importantíssimo escritório, no conturbado centro financeiro da Capital.
Sentado na fofa areia, da minúscula praia deserta, Gomes contemplava o mar a sua frente. Sentia a imensa dor que o afligia, dando-lhe a nítida impressão de que seu peito estivesse para estourar e seu coração pronto para encerrar o ritmo vital.
Olhando para o infinito, tentava amenizar o desespero que começara a gritar em seus ouvidos. Entoava então canções preferidas e orações que aprendera ainda menino.
Começou contudo, a lembrar de sua infância simples, mas feliz. De sua juventude, de poucos amores, onde sua dedicação fora voltada principalmente aos estudos, conseguindo assim uma excelente colocação na empresa em que começara como office-boy, ainda aos treze anos.
Recordou-se dos olhares e frases cheios de cumplicidade que trocara durante meses, com Renata Garcia, a secretária de seu superior.
Mas que chances teria um encarregado do CPD, que mal acabara de concluir sua graduação em Administração de Empresas, com a funcionária mais cobiçada, secretária sênior, do presidente da empresa? – Dizia sua baixa estima.
No entanto sua competência e dedicação ao trabalho trouxeram, não somente um cargo de Diretor, como também o casamento dos sonhos com Renata.
Alguns anos se passaram e, com eles, chegou o apartamento novo, os carros, os empregados e Rogério, Marcelo e Gabriel.
Rogério nascera depois de três anos de uma união exemplar. E Marcelo e Gabriel chegaram depois de um ano e três meses.
A família tornou-se o exemplo para todos. Sinônimo de felicidade e educação.
Os finais de semana eram reservados para visitas aos avós, ora um, ora outro, pois moravam em cidades diferentes.
As pescarias eram constantes e já faziam parte das férias, pois Gomes possuía uma lancha grande o bastante para toda a família e, por vezes, alguns casais de amigos.
Mas do que Gomes gostava mesmo eram os meses de férias, que eram passados no litoral, com toda a família, Gomes e Garcia.
Um fato ocorrera a alguns meses atrás, tirando a tranqüilidade de Gomes. Recebera, a notícia de que teria um filho, que fora concebido na época de início de sua faculdade. O rapaz teria agora 23 anos, morava sozinho, pois sua mãe falecera, deixando como herança o nome de seu pai.
O rapaz é quem telefonara para a secretária de Gomes, que recebendo a notícia aconselhou-o a deixar todo o processo com seu advogado.
Uma vez que havia se lembrado (pelo nome) da mãe do rapaz, que fora sua namorada durante os primeiros meses de faculdade, Gomes ficara apreensivo, pois receava abalar a estrutura de seu casamento com um possível resultado positivo.
Um dia antes da viajem de Férias, recebera o resultado. Ricardo Vieira Marques era seu filho. Ficou acertado que contaria para sua esposa e familiares, assim que chegasse à praia.
E assim o fez, sendo bem recebido por todos, que ficaram até curiosos para conhecer o rapaz. Mas no momento não seria possível, pois o mesmo estaria viajando – afirmara Dr. Cortês, seu advogado.
Neste final de ano, como de costume toda a família fora em direção ao litoral. A excitação estava presente também agora nos rostinhos das crianças, que tiveram a promessa de uma pescaria com o pai e os avós. “Só pode i menino”, como dissera Gabriel, agora com 3 anos.
Era antevéspera de Natal e as crianças prometeram trazer o jantar. E trouxeram, por volta das 17:00 horas, um recipiente com muitos peixes.
Uma emergência ocorrida na empresa, fez os demais Diretores
chamarem Gomes de volta. “Apenas algumas horas” - eles afirmaram. O helicóptero viria busca-lo.
Gomes já se acostumara a ter que deixar o lazer muitas vezes, ou para atender um longo telefonema da empresa, ou ter que ir pessoalmente até a mesma, não importando o que estivesse fazendo.
A noite já havia caído e o horizonte mostrava a típica formação de nuvens, pressagiando uma forte chuva de verão.
No momento da decolagem, Vieira, o piloto, um jovem alto, corpo atlético e muito educado, solicitou alguns minutos a Gomes, para que esperassem a passagem da chuva que estava para chegar, que parecia mais uma tempestade, com direito a raios e rajadas de vento.
Gomes ordenou que levantassem vôo imediatamente, pois em quinze minutos estariam no planalto, fugindo de toda aquela confusão.
A visibilidade da aeronave estava quase que nula. E o piloto teve que desviar de seu caminho a fim de procurar uma corrente de ar menos perigosa.
Chegou uma hora onde o piloto se sentira perdido, pois não identificava mais qual a distância que tinham tomado da costa, e a que altura realmente estavam, enquanto que fazia tremendo esforço para manter a aeronave estável.
Num dado momento sentiu-se um baque fortíssimo e Gomes se viu saindo do aparelho, de dentro d’água, com um ferimento no peito. A dor somada ao pânico fez com que Gomes tivesse uma força sobre-humana, nadando em direção à única luz que conseguia enxergar. Um ponto no infinito.
O piloto o acompanhava, sem algum ferimento aparente. Tentava manter Gomes otimista, parando as vezes, para chamá-lo. Vieira possuía um preparo físico muito melhor que Gomes, o que veio a ser de muita sorte para ambos, pois conseguiam manter um ritmo de respiração e braçadas, que poupava mais o físico.
Nadaram muito, e Gomes por vezes tinha a sensação de que suas braçadas não o tiravam do lugar.
A luz cada vez mais se tornava nítida, até que após cerca de três horas, Gomes e Vieira chegava em uma praia, ofegantes, exaustos e fracos. Notaram que a praia pertencia a uma minúscula ilha, que abrigava um farol. Um lugar deserto.
O piloto, mesmo muito cansado, procurava fazer com que Gomes se mantivesse acordado e animado, ressaltando o quão importante era terem sobrevivido. Teve a idéia de se enterrarem na areia, pois mesmo molhada, encontrava-se mais quente, em função do dia de sol escaldante. Com isso evitariam uma possível hipotermia.
Gomes tentou se desculpar com Vieira.
- Sabe. Gostaria que você me perdoasse por tê-lo forçado a levantar vôo, com aquela tempestade chegando...eu... - Sem conseguir concluir sua fala, Gomes cai num pranto convulsivo, deixando o desespero tomar conta de si. Pensou em como fora egoísta e irresponsável, priorizando o trabalho à segurança de seu piloto.
- Sr. Gomes, não precisa se desculpar. Eu deveria tê-lo alertado com mais firmeza quanto à falta de segurança de nosso vôo. Se há culpa, esta pertence a ambos. – Consolou Vieira.
O Piloto era todo cuidados para com Gomes, que se mostrava cada vez mais fraco, em função das dores em seu peito.
Em mais uma seção de devaneios, Gomes pensou em seus filhos.
- Sabe o que mais me aflige Vieira? – Pergunta Gomes, sem obter resposta.
- Pensar que estou prestes a conhecer um filho e sofro esse acidente. E se algo me acontecer? Minha dor está ficando mais intensa, mal consigo respirar...
- Não pense nisso agora. Veja. A chuva já passou, está para amanhecer e não estamos tão longe assim da costa. Com certeza virão nos buscar em breve. Mantenha-se calmo.
- Fico pensando como deve ter sido a vida desse meu filho. Por que será que me privaram a felicidade de lhe acompanhar o crescimento e de lhe ensinar as coisas lindas da infância? – questiona Gomes.
- As pessoas têm seus motivos, por mais que não nos agradem. Prefiro pensar que seu filho teve uma infância feliz, de acordo com que sua mãe pode lhe dar. E que se o está procurando agora é porque tudo tem sua hora.- concluiu Vieira.
- Fico pensando...não pude ensinar coisas boas a meu filho...E se algo me acontece agora? Quem iria ensinar meus filhos pequenos a brincar com bolinhas de gude? Quem os ensinaria a empinar pipa? E a fazer suas próprias pipas? Quem seguraria em seus bancos, enquanto esses tentassem se equilibrar em cima da bicicleta? Quem iria ensinar as melhores jogadas de futebol? E aquele pião que pedi para meu pai fazer, um para cada filho. Quem os ensinaria a jogar? E os valores? O Amor, a Solidariedade?..Será que se eu não estivesse mais por perto, meus filhos não seriam obrigados a aprender informática, a jogar jogos de guerra e morte, não teriam que estudar para utilizar somente a caneta e os dedos, doando seu tempo todo, para uma empresa, que não respeitasse nem época de Natal?.
Os olhos de Vieira estão marejados, tamanha a emoção quanto aos devaneios e delírios de Gomes.
O sol já estava alto quando Vieira escuta um motor que vinha em sua direção. Já estava chegando à praia.
Neste segundo de imensa emoção, Gomes sente uma dor muito forte em seu ferimento no peito, dá um suspiro e tomba para o lado, para total desespero de Vieira, que tenta reanimar seu novo amigo, berrando pelo socorro, já em pânico, suplicando para que Gomes resistisse.
***
Vozes ecoavam em um ambiente com um odor conhecido, mas pouco agradável.
- Será que ele resiste? Sei de um vizinho de uma amiga minha, que ficou nessa vida, se é que posso dizer assim, durante anos – Gomes não teria como não reconhecer a voz de Tia Iolanda.
- Na realidade os médicos estão aguardando os resultados de alguns exames para dar um parecer, tia Iolanda. – Responde Renata, tentando ser educada, acompanhando a tia para fora do quarto e lamentando o porque de ter em toda família uma tia inconveniente.
O pai de Gomes entra pálido na sala de espera, dando uma notícia surpreendente a todos:
O piloto... – Diz, sem conseguir concluir a frase.
O que tem ele? – Assusta-se Renata – O médico me disse que ele estava tão bem. Que receberia alta ainda agora....
- Não é nada disso. – Interrompe vovô. Gomes – Ele, o piloto, me procurou e me contou que tudo o que ocorrera até ali fora uma grande “coincidência”, que ele estava ainda atordoado, pois não conseguia conciliar os pensamentos.
- Então... – questiona Renata, já impaciente.
- Pensei por um momento que ele queria nos exigir alguma indenização, e acabei sendo bastante ríspido com ele. Neste momento, indignado, ele me diz que seu nome é Ricardo Vieira Marques, e me chama de vovô.
***
- Vamos até lá fora, pois papai precisa descansar. – Gomes reconhece a voz de Renata.
- Só mais um pouquinho mamãe. Peciso convessá sélio co papai.
Gomes neste momento reconhece a voz fininha de Rogério. Uma emoção indescritível tomou conta de seu ser, e Gomes fez tremendo esforço para voltar a si.
- “Ó papai, peciso convessá muto com você. O vovô me deu um plesente e eu não sei como bincá. Ah! E o Papai do Céu mandô pra gente um plesentão. O nome dele é Ricado . Aquele moço que tava voando com você
Neste exato momento uma luz toma conta de seus olhos e Gomes os abre, contemplando o magnífico rostinho emocionado de seu filho.
- A mamãe disse – continua Rogério - que ele é nosso irmãozão. Mas ele não veio na barriga da mamãe. E ele falô que também não sabe bincá com esse binquedo qui o vovô deu, por causo que num deu pro pai dele insiná. Acóda papai, vem insiná a gente. Ah! O vovô disse que o binquedo chama pião.”