Um Grão de Loucura
Todo dia revoluções?
Fábio chega em casa às sete da noite, e antes de tudo toma um banho pelando. Depois se enche de talco, colônia e desodorante; veste o pijama, e se senta no sofá da sala, em frente ao aparelho de tv. Ana, sua mulher, lhe traz um prato bem cheio de arroz, feijão, bife de panela e batatas, e ele come devagar, enquanto assiste no jornal às notícias do país e do mundo.
A Ana também se serve, pouco, e come com ele, sem vontade, apenas pra fazer companhia. O filho deles, Binho, joga videogame na tv que tem no quarto; ele janta todo dia às seis.
Hoje é quatro de janeiro, o primeiro dia útil de 1999, e ele já teve que ir trabalhar. Agora, notícias de enchentes, ataques dos EUA ao Iraque, e a mesma cantilena diária; “hoje cinqüenta milhões de dólares saíram do Brasil” (que viraria uma progressão: 50 > 100 > 250 > 380 > 470, e continuava).
E lembra do telejornal do dia primeiro, que anunciava: “hoje fazem quarenta anos da Revolução Cubana”.
Na hora ele ouviu aquilo e ficou remoendo, não disse nada. Agora, entre duas garfadas e o comercial, virou para a mulher e falou:
- O que aconteceu conosco? E com todo o Mundo? Só sobrou Cuba?
Ana deu de ombros e foi lavar os pratos. Ela não dá a mínima, mesmo, não quer saber de nada.
Trinta e um anos.
Ela foi sua primeira namorada, eles se conheceram na faculdade de Letras, e logo começaram a namorar, e logo ela ficou grávida.
Ele não tinha emprego, nem dinheiro, nem fazia idéia. Um colega chamado Gustavo o ajudou, informando que outro colega, Frederico, que estava no terceiro ou quarto ano da faculdade, ia largar um estágio de pesquisador no Cadastro Integrado de Fatos Urbanos; Fábio pediu a Frederico que o indicasse, e ficou com seu lugar de estagiário.
E foi assim que Fábio começou a trabalhar.
Tinha que atualizar perenemente fichas de firmas do comércio e da indústria que funcionavam no Estado. Em troca ganhava dois salários mínimos por mês (uma ninharia).
Acicatado pela gravidez de Ana ele dava o melhor de si no trabalho, voluntarioso, fazia hora extra.
E quando Fabinho nasceu ele já estava efetivado, com carteira assinada, e ganhando um tanto mais.
Logo depois se passaram dez anos.
E agora ele come bife de panela com batatas douradas, ouvindo falar no real, no dólar e no euro, e pensando na Revolução Cubana, enquanto seu filho joga Sonic no quarto e a mulher enxágua a louça da janta, louca. Qual o sentido de tudo?
Parece que os medíocres tomaram conta de tudo...
...a sua sala... ah, a sua sala (na repartição)!
Aqueles loucos, aquele idiotas cretinos, não vêem que o tempo que jogam ali é a sua vida, o seu tempo?
O que eles esperam? Até onde vai a sua loucura?
Por qual deles começar? O chefe, Sr. Aloísio, velho, gordão, baixo, meio careca, sempre vestido de terno, geralmente chega às dez (enquanto todos os outros chegam às oito), senta-se a sua mesa, abre o jornal e começa a ler os classificados, recortando anúncios de prostitutas para montar o seu cadastro. Cola os recortes em pequenas fichas brancas, que organiza pela ordem alfabética do nome da empresa num pequeno fichário de metal sobre sua mesa, que ele fecha a chave quando sai.
Pesquisa até o meio-dia.
Aí começa a telefonar para as casas, que ainda não conhece, levanta preços, serviços etc. Escolhe uma para a hora do almoço, outra para depois do trabalho. Aí sai para almoçar. Volta às três ou quatro da tarde, e sai de novo antes das seis, para outra “pesquisa”.
Anda sempre com uma caixa de viagra e muitas de camisinhas no bolso interno do paletó.
Seu quase vizinho Otacílio (que mora no Lins, enquanto que a casa básica de Fábio é no Méier) é um chato, metido a besta porque fez engenharia, e se acha alto e bonitão, mas esquece que é bicha, aliás, tricha. E mais chato ainda com sua mania de futebol, sempre enchendo o saco de todo mundo, achando que com essa bobagem (e as vantagens sem conta que conta sobre mulheres que supostamente transou) vai provar pro mundo que é machão.
O quarto macho do setor de cadastro (tirando os estagiários, que vão e vêm muito rápido, e ele não considera realmente como pertencentes ao lugar, e não são, isto é, o lugar não lhes pertence, como aos antigos, ou ao contrário?) é o mais insuportável de todos (para Fábio as fêmeas são sempre super suportáveis, mesmo quando são coroas sem graça como as suas duas colegas efetivas, quem dirá no cio dos dezoito, vinte anos, como as três lindas estagiárias atuais: Laura, loura, que faz história; Bakla, castanha, pedagogia; e Dirceclair, negra, sociologia).
Os dois não se cruzam, não se topam, uma vez quase que saíram no tapa depois da hora de ir embora, foram Selene e Telúria, as duas efetivas do setor, que os separaram.
O nome do cretino é Bruno Aspiral, usa óculos fundo de garrafa, é magro de mau, mediano, cabelos negros lisos, sujos e longuíssimos, mas está ficando careca a partir da testa, e barba negra e densa, sebosa e preta, cobrindo toda sua cara de pau. Nos lábios ocultos mas perceptíveis um rítus, indefectível riso de desdém para com tudo e para com todos, mofa, superioridade (adivinha-se que ele mastigue inaudíveis afrontas aos outros, enquanto se afasta), sente-se acima da burrice de todos à sua volta, só porque fez uma faculdadezinha de filosofia, o filho da mãe.
Bem se vê que a repartição é um esgoto, vórtice de universitários otários que tolamente nasceram aqui.
Telúria faz sinal para o microônibus da Ideal, Ribeira-Castelo, e se senta no único lugar vago, o banquinho bem da frente, com direito a solidão, cinto de segurança, janelinha e um inócuo ar refrigerado no verão de quarenta e três graus sob o sol no qual vai ao centro, trabalhar, e reflete: que homem vai querer compromisso com uma mulher de quarenta e nove anos, divorciada, com três filhos, grisalha (mas pinta o cabelo e os pentelhos de louro), formada em insípida pedagogia, com o medíocre emprego no cadastro?
Vai para o centro com a certeza com que a água suja da banheira escoa para o ralo. Que mais?
E lembra-se do ingrato do Adriano. Quando se conheceram, ele era um frouxo, com medo de tudo, pensava até em suicídio. Trabalhava como vigia noturno de supermercado e morava sozinho em uma casa na Ribeira, cheia de ratos (camundongos), que ele não conseguia erradicar, e de lixo pelos cantos, que ele sempre esquecia de colocar na rua, nos dias em que o lixeiro passava.
Ela se mudou para a casa dele. Limpou tudo, jogou o lixo fora. Ligou para o serviço de desratização da Comlurb, que mandou um funcionário no mesmo dia, o qual acabou de vez com os ratos.
Ela o consolou e alegrou, conversavam pelas noites de insônia e ela o animava quando ele se sentia triste, frustrado, humilhado, diminuído, desmotivado etc. Tanto fez que ele arrumou um emprego numa loja, de dia, e entrou pra um curso de contabilidade à noite. A escalada.
E o primeiro filho deles nasceu.
Ele foi trabalhar de contador, ganhando bem mais, e estudou computador, e depois inglês.
Tornou-se gerente da loja e prestou vestibular para administração.
Ela largou o emprego na escola e teve o segundo filho.
Ele se formou e mundou de emprego, sempre para melhor.
O terceiro filho deles nasceu, e o safado sumiu, desapareceu, como que por encanto, sem deixar rastro nem cheiro. Meses depois ela descobriu que ele estava trabalhando em São Paulo. Colocou-o na justiça, e conseguiu, depois de tantos outros meses, uma pensão de três salários mínimos.
O que lhe valeu foi o Otacílio, seu amigo de infância, lhe arranjar aquele emprego no cadastro. Se não fosse isso, o que teria sido de seus filhos?
Pena que Otacílio não curtisse mulher nem um pouquinho. Ele era sempre super legal com ela, interessado, carinhoso; e além disso era alto e bonitão, solteiro (isto é, nunca tinha se casado com uma mulher), tinha casa equipada, carro, gostava de crianças, e suas idades regulavam. Só que ele morava havia anos com um cara, o Urbano, um bancário, de quem era companheiro, e os dois se comportavam com ela como um casal amigo, iam à sua casa etc. Bem.
Era um pouco mais de seis horas, quando Bruno Aspiral desceu pelo elevador, depois de cumprimentar secamente a todos por quem cruzou, com um simples “até amanhã”. Um indivíduo anti-social, que não fazia a menor questão de parecer agradável a ninguém. Muitos se perguntavam como um sujeito assim conseguia manter por tanto tempo o mesmo emprego.
Saiu do elevador, esquecendo de falar com o ascensorista (regra de ouro da empresa, o chefão máximo e os chefetes faziam questão de saber o nome e perguntar pela família de todos os empregados humildes, e comentar futebol com falsidade, recebendo em cheio uma gratidão e um reconhecimento tão falsos quanto davam verdades). E também nada falou ao porteiro, de quem nem examinara ainda as feições, ou saberia reconhecer se encontrasse, alhures.
Ficou parado na esquina como se esperasse adrede por alguém. Mas o que fez foi entrar no primeiro táxi que apareceu.
- Pra onde, doutor?
- Eu não sou doutor, meu amigo. Eu fiz bacharelado de filosofia, só. Pra ser doutor eu teria que fazer doutorado, com um mestrado antes, de preferência. Mas não passei na prova.
O chofer olhava pelo espelho retrovisor pràquele cara patético, sem saber o que lhe responder. Acelerou e foi em frente pela avenida.
- Pra onde então, bacharel?
Bruno Aspiral riu.
- Eu quero ir a um bar, um bar à beira-mar, na zona sul. Quero beber muito. Muito mesmo. Toca pra Ipanema.
- O senhor é quem manda.
- Como é o seu nome, companheiro?
O taxista estranhou aquilo, mas respondeu cortês:
- Jorge Basin, doutor.
- Eu não sou doutor...
- Tá bem, tá bem, desculpe.
- Basin... belo nome. É de origem Ioruba?
- Não sei dizer, não senhor.
- Sei.
Caixas de bombom, na segunda prateleira, de baixo pra cima. Barras grandes de chocolate, primeira prateleira. As balas ficam dentro de grandes bolas de vidro que parece cristal brilhante, ao alcance dos olhos das crianças e das mãos das vendedoras. Bengalinhas de açúcar verde, vermelho e branco; almofadões de pirulitos gigantes; sacas de jujubas e confetes, sobre o balcão. Chicletes, barras pequenas de chocolate, pirulitinhos, moedas e cigarros de chocolate, outros confeitos variados, na vitrine do balcão, à mostra e fechada. Tem algodão doce, pipocas, balões coloridos, marias-moles e pés-de-moleque pelas paredes. Na estante do meio da loja tem doces finos, bombas, brigadeiros, canoas etc. Na alta vitrine giratória próxima à porta ficam os mostruários de isopor de tortas de marshmellow, de creme, morango, floresta negra, doce de leite, entre outras.
As tortas e bolos confeitados de comer ficam lá dentro, no freezer, à espera do freguês.
Irani também se sente assim, à espera do freguês, que será um cara especial que vai entrar na Casa de Doces da Bruxa pra comprar um puxa-puxa qualquer pra sua namorada, e ela vai saber que ele é o amor da sua vida, e ele vai saber do mesmo, ao mesmo tempo, os dois vão sincronizar tudo, e ele vai esquecer de tudo, da outra menina e do doce, puxa a vida, Irani pensa cheia de calma e de pressa, vale a pena saber esperar.
(Irani Gonçalves Andrade tem 22 anos, mora na Tijuca, tem duas irmãs mais novas, o pai é militar, fez o sgundo grau e parou de estudar, trabalha há três meses na casa de doces, o pai foi contra mas ela sabe sempre fazer o que quer sem contrariar ninguém.)
Às oito em ponto todos os funcionários altos e baixos fazem fila diante do antiquado relógio de ponto, o qual batem rápido, e vão depois, mais devagar, pràs suas respectivas salas, para devanear disfarçado.
Selene vem sozinha de Copa, gosta quando encontra Telúria lá embaixo, pra subirem conversando, ela é sua melhor única amiga. Pensa que Telúria tem sorte, pelo menos teve marido que a abandonou, e tem que carregar três filhos machos nas costas largas.
Senta-se a sua mesa e vai virando as fichas que tem que passar pro computador, uma por uma, distraída, pensando no seu amor secreto, sentado bem ali perto, e que ninguém adivinha, é tão triste ser solteirona, ela não tem coragem nem de jogar charme e o bobo também parece que nem olha pro seu lado.
Selene não tem rancor de ninguém no trabalho, ela é partidária da não-violência, faz ioga, canta mantras, é vegetariana, come carne de soja, não se intoxica, e, malgrado seu querer, não faz sexo.
Lá vai o seu objeto de desejo para o banheiro (ou para andar de lá pra cá, pra arejar), e ela fica olhando por cima dos cílios até ele sair da sala, aquela calça velha e suja, as selvagens barbas negras.
Otacílio faz alguma observação maldosa para o Fábio, algo como dizer que o Bruno é porco ou louco ou ambos. Fábio ri com mesquinhez, cúmplice.
Selene sente olhos queimando-lhe as costas, volta-se e vê Telúria, que a tudo observava e já tinha sacado.
- Ele deve ser cego...
Selene puxou a amiga pelo braço, o mais discretamente possível, e sussurrou:
- Não dá bandeira, maluca.
- Maluca é você. Amar em segredo. Amar sem ser amada. Bobagem. Se abre com ele. Ele é tão solitário...
- Você acha que tem chance?
- Chance inicial sempre tem. Mas tem que dar o bote, senão outra pega, e aí...
- Ele deve me achar coroa.
- Outra besteira. Ele também não é nenhum garotinho.
- É.
Depois de beber até escornar depois do expediente num bar da orla com seu amigo de infância o taxista Jorge Basin (cursou o médio e a faculdade na mesma classe que ele, mas, depois de se formar, Jorge decidiu ganhar dinheiro dirigindo táxi; os dois estavam só brincando de televisão há instantes atrás, quando se encontraram e fingiram não se conhecer), Bruno Aspiral volta para sua casa descasada, em plena mão e contramão do bairro de São Cristóvão.
Jorge é devoto de São Cristóvão, pois ele é o padroeiro dos motoristas. Outro ex-colega deles, o Lúcio, que é maquinista (o nome é outro, mas ele esqueceu) de trem de metrô, também adora o santo, pois ele Lúcio é metido a alquimista, e São Cristóvão foi o homem que carregou o Menino Jesus nas costas, para atravessar um rio, e é um símbolo importante para a alquimia.
Já o Célio valoriza o bairro por várias razões científicas: ali fica o antigo Observatório Nacional de Astronomia, agora tornado museu, e o Museu Histórico da Quinta da Boa Vista, e o Zoológico, e o Museu do Zoológico, e a casa da Marquesa de Santos, e a casa de banho de D. João VI, e o Colégio Pedro II.
Bruno se lembra mesmo é do desativado Pavilhão de São Cristóvão, onde, em menino, ele adorava assistir às Expo-Ex, exposição de armas e tanques do exército, na época da ditadura militar.
Agora pra ele o bairro é a terra do Vasco da Gama (time de futebol pelo qual torce com garra) e da Feira dos Nordestinos, onde ele gosta de ir pra comer, ouvir forró e pegar mulher.
Por um momento ele ficou excitado, pensando em arrumar alguém hoje. Mas logo depois cambaleou, estava bêbado, triste, cansado e surrado demais.
Com dificuldade enfiou a chave na fechadura, trancou a porta, acendeu a luz, detectou a bagunça e as baratas que não fugiam dele, foi até a cozinha, colocou um litro de iogurte (bebida láctea, na verdade) em um copo com a mesma capacidade, levou prà sala, desabou no sofá, botou Led Zeppelin, acendeu um Marlboro e ficou bebendo e lembrando do diálogo no bar.
- Mais dois chopps!
- Você tá acendendo um cigarro no outro. Que que é isso? Quantos maços?
- Três.
- É muito.
- Não fode.
- Então vamos beber.
- Vai voltar prà rua hoje?
- Não. Tô bebendo. Depois vou pra casa, aqui perto, cê sabe. Ah, e não posso te levar, você vai ter que pegar um táxi (outro), não quero perder a carteira por dirigir embriagado, a nova lei de trânsito.
- Sic transit...
- O quê?
- Todos os dados. O jeitinho, por exemplo.
- Quer ficar no meu ap?
- Não, obrigado. Gosto de dormir na Casa da Mãe Joana Dark.
- Que porra é essa?
- Brincadeira. Gosto do meu canto.
- Tá.
Beberam e assistiram bundas, uns tempos. Aí o ipanemenho indagou:
- E você? Continua estudando filosofia? Escreveu alguma coisa?
Bruno olhou longe no mar, e falou:
- Queimei tudo.
- Por quê?
- É tudo repetição.
- Qual problema da repetição? Meu trabalho também é. Dirigir é repetir indefinidamente os mesmos movimentos. E é bom. A vida é repetição.
- Só que todos os filósofos importantes fizeram coisas novas, diferentes. Sabe, Vontade e representação, Temor e tremor, Ser e tempo, Diferença e repetição...
- Mas eles não repetem nada? É tudo novo, novo?
- Claro que sim.
- Sim o quê? Repetem? Não repetem? Escreva o que quiser, pense sem culpa. Ou não. Vá fazer outra coisa, se quiser, então. Arranje uma mulher.
- Eu tenho dezenas de mulheres.
- Então o quê te falta?
- Diferença.
- Isso é coisa de mulherzinha.
- É a mãe.
- Vou chegar.
- Vamos beber.
- Garçom, mais dois.
Stephen Biko foi um dos maiores ativistas políticos da África do Sul, na década de 70, lutando contra o aparthaid, a segregação dos negros pelos brancos.
Quelê é preto e mora nos anos noventa, num subúrbio distante do centro da cidade, na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, grande/pequena, pobre/rica, do excluído/incluído país Brasil.
Ele gosta de ler e de colecionar recortes de jornais que falam de líderes, políticos, artistas e movimentos negros.
Às vezes é bem difícil saber quem é preto e quem é branco nesse mundo multicolorido, mas parece que há olhos expertos em fazê-lo, por toda a parte, faróis da sociedade de consumo de peles, há peles valiosas de dez dólares, mil dólares, ou dez milhões de dólares, como aquela loura (oxigenada e alva) que dança. Já a puta preta da sua rua de barro dá tudo que alguém quiser por dez moedas de lata.
Com elas volta para o apartamento do aparthaid nacional de manhã com duas bisnagas e uma lata de leite em pó e pó de café, foram onze trepadas, hoje a família de Quelé vai comer carne de Segunda com feijão com carne seca e toucinho, arroz com brócolis, farinha de mandioca e banana.
O nome da irmã (produtiva por prostituta) é Darina (mas ela adotou o nome Deise). Tem três filhos sem pai, ou melhor, com milhares de pais. Uma menina mulher chamada Calma, dois machinhos pequenos Grau e Colírio. Os três mulatos clareados.
Sirônia é gorda e tem dois filhos de colo, Jaco e Melone, azul e rosa, pretos como os primeiros africanos a aqui chegar, filhos de seu homem fixo sem papel, Carlão, mestre de obras no interior do estado.
Ele vem uma vez por mês pra chamar Quelê, Darina e Petrônio (o pai deles) de vagabundos, pois o patrono da casa está aposentado porque tem cinqüenta e poucos anos e caiu de um andaime baixo, anda rateando, não consegue trabalho. Quando Carlão volta pra Barra do Piraí todo mundo respira aliviado, ele gosta até de bater, é gordão e grande, manda dinheiro em envelope toda semana pra Sirônia, com mil recomendações de só gastar com os filhos deles dois. Ele quer e faz força pra ela e os filhos irem ficar com ele em Barra, mas ela não quer se afastar do ninho, chora, berra pela noite, ele ainda não conseguiu dobrá-la com afagos e porradas.
A mãe de Quelê se chama Brigite Sofia, é gorda e respira pela boca, aos trancos, mas todo o dia pega dois trens e dois ônibus para chegar na casa brilhante na outra volta do anel, no ponto resplandecente do universo, na Barra da Tijuca, na casa da emergente, onde trabalha em faxina todo o mês inteiro para ganhar o equivalente a duas noites de sexo mais ou menos de sua filha.
Quelê tem uma baique e gosta de dar rolé por todo o bairro, pela tarde a fora.
Com seus vinte e poucos anos, vivendo basicamente às custas das irmãs e da mãe, sem ter conseguido passar do primeiro ano primário, rejeitado em tantos empregos (simples) que tentou conseguir, ele se desligou da preocupação com dinheiro, trabalho, futuro, sistema, tudo, e gosta de pensar em si mesmo uma espécie de rastafari brasileiro, que é claro que fuma sua boa maconha, sabe tocar reggae e samba e soul no violão faltando duas cordas, mil acordes de três notas cada, três pra cada canção, alguém com forte vinculação espiritual, e o resto virá.
Fez um soul em homenagem ao líder libertador do Quênia (lê-se Djomo Queniata), chamado “O Leão do Quênia”:
Salve Jomo Keniata
Salve Jomo Keniata
No meio da mata
Pronto de lança em punho
Gritando feroz:
Salve a paz!
Salve a paz!
Salve a paz!
Salve a paz!
E um outro soul-martelo nordestino brasileiro em que chama Antônio Conselheiro, Tiradentes, Zumbi e Lampião de “heróis do nosso povo”, e lamenta por eles, com versos assim:
E Antônio Conselheiro nós vamos chorar
Toda vez que ocê gritar ai! e eles te matar
Também dedica letras aos índios do Brasil e do Mundo, por onde se vê que pra ele não há apartheid pra ser preto.
Quelê entra no bar da sinuca e pede uma cerveja.
- Tu tem grana?
Ele não se ofende, simplesmente mostra a nota de lata pro portuga carioca, dez latas, ele lhe serve uma cerva, que ele bica sentado a cavalo na cadeira ao contrário, olhado prà rua feito um radar (imitando o jeito do entregador de pizza de Faça a coisa certa de Spike Lee):
- Que que tu estás a procurare?
- Boceta.
O velho ri e canta:
- Dona Marieta
Escreveu na tabuleta
Quem tem dinheiro fode
Quem não tem toca punheta.
- Cariortuga, tu tá sabendo do Mandela?
- Quem?!
- Ele ficou trinta anos na cadeia. Mas libertou seu povo, se tornou seu herói, e contribuiu para igualar pretos e brancos na África do Sul. Sacou?
- Não.
Cariortuga burro, melhor deixar pra lá (não adiantava mesmo lhe falar sobre Malcom X). Vou mentalizar uma boceta branca, branquinha como a neve, se é que realmente existe neve algum lugar.
- Ó Quelê, tu não procuras trampo?
- Tu é metido, hein, Porturioca. Minha mãe tá vendo um treco pra mim, com o patrão dela.
- Tu o estás sempre a dizere, mas enrolas.
- Eu tenho trabalho, sou pesquisador da cultura afro-pop. Ainda vou lançar um cd e aparecer na tv, e aí você e outros engraçadinhos do bairro do barro vão se inchar de orgulho, todos manés, hm, hm, eu conheço esse gajo aí.
- Vai sonhando, ó pá.
Quelê vai andando por Costa Barros e Barros Filho, procurando pela princesa e pelo graal, e pensando em sua cultura: fato curioso, pelo mesmo tempo, na mesma época, no final do século XIX, aqui como na América do Norte, os negros recém libertados fundiam a música africana com sons e ritmos ameríndios e europeus, e criavam, lá o blues e o jazz, aqui o choro e o samba (e tantos outros ritmos do Brasil e de lá [e também pensou que nós também somos América, somos a América do Sul, a América Latina, a América em todos os sentidos]).
As ruas vazias, Quelê foi pra casa, ler à luz da tv (que todos vêem integrados) A Vida Verdeira de Domingos Xavier de José Luandino Vieira (autor angolano) que ele tomou emprestado na Biblioteca Popular de Madureira.
Ana foi dormir depois de assistir na tv ao programa de entrevistas do Jô, sentada ao lado dele, no sofá da sala.
Fábio apagou a luz e se sentou à mesa de jantar, e ficou parado, sem fazer nada, olhando prà frente, e vendo cada vez melhor na penumbra condensada com a luminosidade advinda dos postes da rua, em frente à casa.
Silêncio. A mulher e o menino dormiam, com certeza. Ele não tinha sono nenhum.
Um mosquito zunindo em seu ouvido direito, e arredor da cabeça, pousou no nariz e no queixo, passou à frente de seus olhos. E ele deixou o mosquito estar.
Há muito tempo que a Ana já não gosta mais de fazer sexo com ele, e ele sente uma espécie de tesão refinado, que já não sabe onde pousar. E fica sonhando de olhos abertos no escuro luminoso com as meninas estagiárias do cadastro.
Aos poucos seus olhos vão se acostumando e ele vê duas baratas sobre a mesa de almoçar e de jantar.
E ri pensando no escândalo que Ana faria se as visse, de medo e de nojo.
No entanto para ele aqueles insetinhos não significavam nada, ou quase nada. Ao menos eram uma presença natural, levemente divertida, como pássaros pousados numa coisa próxima e seu movimento encantado, ou a diversão gnômica de pequenos gatinhos pulando e brincando.
Viu mais: uma aranha aguardava atenta, no outro lado do retângulo tampo da mesa, próxima a uma lacraia que corria muitas pernas, e ignorava o mede-palmo, o tatu bolinha, a taturana e a minhoca cascuda que também flanavam por ali.
- Como essa simples távola quadrática é freqüentada no escuro pós-Jô da noite quando a mesa e a casa são delas e o clássico mundo urbano humano dorme fode bebe ou se se droga! - pensou Fábio, ao notar que chegavam três moscas, um louva-deus, sete esperanças, quatro grilos, dois besouros, cinco joaninhas e oito ratos à festa pluridimensional da mesa (pois se ignoravam uns aos outros, cada um em seu mundo próprio) e sentia o pau duro, duro, duro, duro demais, pensando só em Bala, Laura e Dirceclair.
Quase bêbado, exausto, duas horas da manhã, tendo que acordar cedo e ir trabalhar no dia seguinte, Bruno se sente totalmente desperto, e fica deitado no sofá da sala olhando para o teto, sem conseguir dormir.
Jorge Basin era uma besta mesmo, só conseguiu tirar o diploma porque a universidade brasileira é burocrática, favorece a mediocridade e afugenta a inteligência. Mas depois o tal diplomado vai ser corretor de imóveis, vendedor, motorista de táxi. Ou burocrata de cadastro. Se ele mesmo também se formou com certa facilidade, não era porque era um medíocre também?
Lúcio Polidoro parecia muito mais um filósofo que todos eles. E não fora até o fim do curso, desistiu. Lembra como os professores acadêmicos e acanhados sabotavam Lúcio, a quem chamavam de delirante, e como os semi-alfabetizados colegas debochavam dele?
Bruno sentiu raiva, ódio aflorar em ondas cada vez mais intensas.
Acendeu a luz, pegou o pé do chinelo e partiu pra cima de uma das muitas baratas que se refestelavam pela casa.
Ao sentir-se perseguido, o inseto avançou na direção de Bruno, como se quisesse atacá-lo, chegar até o seu rosto. Bruno riu e deixou a barata vir. Pegou-a pelas patas com a mão esquerda e esmagou-a com a mão direita, chegou-se à janela aberta e jogou-a no meio da rua.
Todos os animais têm inteligência muito desenvolvida, linguagem e tradição cultural, que passa de geração em geração, mesmo que tudo isso seja incompreensível para os homens, Bruno pensou.
As baratas, por exemplo, diante do medo irracional que a maior parte dos seres humanos têm delas desenvolveram uma tática de fuga, que simula ataque, como se ela realmente estivesse interessada em afrontar uma pessoa, quando, na verdade, ela nada pode fazer, e conta com o pânico que ela já sabe que desperta nos humanos. Tal tática implica em inteligência, comunicação intra e interespecífica e legado de experiências acumuladas. Além desses, há fatores de alterações químicas expontâneas para adaptação e sobrevivência, como a tolerância progressiva que estes (e outros) insetos desenvolvem a inseticidas.
Outro ser que o intrigava era o mosquito.
Por algumas razões: pequeno, molinho, podia furar uma pele bem resistente, com sua picada dolorosa. Sabia exatamente onde o ser humano ouvia, e testava a sua letargia do sono, zunindo bem próximo aos ouvidos. Ficava oculto no quarto, e enquanto você estivesse deitado e bem desperto, ele não se aproximaria; mas é capaz de sentir e saber o momento em que o relaxamento de seu corpo revela o sono imediato ou a transição hipnagógica, e só aí ele ataca; parece capaz de distinguir as ondas alfa cerebrais humanas. Se você acender a luz e caçá-lo, notará que o mosquito segue em vôo contínuo e aí, de repente, some no ar, desaparece, como se tivesse ficado invisível, voltando a aparecer em outro ponto, em descontinuidade de trajetória. E ainda: se você der combate à minúscula criatura e conseguir pegá-lo, e só havia um dele te importunando, imediatamente depois aparece outro, e assim sucessivamente. Aí Bruno pensou que o mosquito deveria ser algum enorme animal de outra dimensão, que temporaliza pequenos tentáculos, que são os mosquitos que nós vemos e sentimos, para vampirizar seres humanos.
E no meio destas elocubrações fantásticas o cadastrador Aspiral dormiu seu sono de álcool.
Indo para o trabalho pela manhã cedo, sentado apertado e tenso no banco, olhando pela janela aberta, ele pensa na realidade da sua sociedade no final do segundo milênio.
Bruno olhou para os braços fortes expostos pela camisa de mangas curtas, e constatou de novo os sinais que pareciam picadas de agulhas intravenosas, mais numerosos ainda hoje, do que ontem. Que diabo seria aquilo? Simples mosquitos, na noite suada que o ventilador não amainava, e ele tinha que deixar a janela aberta, no calor enlouquecedor de janeiro no Rio?
Pensa que está vivendo em um novo mundo apocalíptico, uma verdadeira realidade cyber punk, capitalismo ultra selvagem, com classes ricas, média e pobre separadíssimas, paranóicas, um salve-se quem puder geral, ameaças de mil espadas de dâmocles, mil novas guerras frias, mornas e quentes, bombas A, H, N, laser, canhão fotônico, armas químicas e biológicas, rakers, e quem sabe lá o que mais, doenças inesperadas e incompreensíveis e meteoros gigantes que ameaçam cair a qualquer momento. Ah, e ainda tem os alienígenas, que se forem exploradores já viu, e se forem bons, que diferença isso faz?
E ontem, depois do original do século XVII, o Vaticano lançou um novo manual de exorcismo.
O Sr. Aloísio chegou às dez em ponto, cumprimentou a todos amavelmente, e se sentou à sua mesa. Abriu o jornal que trouxera debaixo do braço, e começou a folhear distraído as páginas de classificados, enquanto espiava por sobre o papel as pessoas atarantadas pelo escritório.
O Sr. Aloísio estava cansado, de carregar o peso de seu corpo gordo, de sua libido, da casa, do carro e de seu filho formado, que se achava (sabe-se lá por que e em qual delírio) melhor. E também de levar durante mais de trinta anos aquele cadastro sinistro, canastra de astronauta do nada. Ah, ele estava velho, como estava velho. Conhecia o ser humano muito bem, e cada um daqueles cretinos, como a palma de sua mão.
Observou e diagnosticou um por um: Otacílio fingia que trabalhava, e passara a noite toda em claro; estava feliz, porque o Urbano ontem voltara de viagem.
Fábio sempre de cara amarrada, mas com a indefectível máscara de bonomia afivelada por cima. Olhava à sua volta como um tigre à caça, à solta. A Ana não transava mais com ele, sabe-se lá por quê, e ele cobiçava esfaimado as pernas lisas salientes das saias adolescentes das estagiárias.
Na sua mesa, com dezenas de fichas de empresas à frente, Bruno Aspiral rastejava pelo dia, saturado com a irrelevância de seu trabalho, ele que se achava um grande pensador, todo encharcado de ressaca, olhos fundos, rajados, roxas olheiras; e via-se pelo seu semblante que esta noite beberia de novo.
E as senhoras?
Selene vivia no mundo da lua, sonhando com seu grande amor que ainda vai aparecer, esperança que ela ainda mantém viva, balzaquinana. Pulsa junto com os altos e baixos do ciclotímico que é seu poeta secreto, seu amor destilado em quintessência de sonho.
Já a Telúria era mais terra, a terra, embrenhada nas contas do mercado e nos cocôs dos meninos. Sentia seus vinte e tantos anos de casa como um defeito, ao contrário do que deveria, e tentava compensar suas deficiências sendo (ou procurando ser) mais eficiente que o normal. Isso todo dia, como um exercício espiritual.
Aloísio virou a página mágica de seu transparente jornal.
(Agora ele está alvoroçado porque apareceu um monte de casa de massagens, que quer dizer de prostituição, cobrando apenas um real e noventa e nove centavos  que equivale mais ou menos a um dólar, o preço de um refrigerante, por exemplo  por uma transada com uma coitada de uma moça que tem que se rebaixar e humilhar abaixo de tudo sendo obrigada pelo cafetão dono da casa de massagem a fazer sexo com centenas de imbecis macacos como ele por dia, ao preço aviltante  isso é claro que ele não pensa, o mundo de um machão só tem homem, mulher pra ele é uma coisa ótima pra uso e gozo e conveniência e prazer, e quanto mais baratas e melhores houver melhor, como uma mercadoria qualquer.)
Fábio olha pela janela à sua frente os prédios cinzas e sujos, as ruas apinhadas de pessoas apressadas, o trânsito moroso e caótico da Avenida Rio Branco.
Pensa no sexo feminino com obstinação, em seu cheiro, suas cores, sua carne, seu gosto, sua textura. E sente a excitação de novo, a presença sempiterna do tesão, pela mulher, a mulher, todas as mulheres do mundo (belas).
Como Anabela, vizinha de Fábio, casada, e com quem ele teve um caso, que felizmente não foi descoberto nem pelo conserte dela nem pela dele, e tudo começou por causa de uma simples xícara de fermento!
Ana tinha ido passar a tarde com os pais, os avós, os irmãos, os sobrinhos e os tios em Guadalupe, e ele revolucionariamente conseguirar desta vez se absolver de ter de acompanhá-la àquele convescote tão freqüente quanto, todavia, era-lhe desinteressante e tedioso.
Anabela era uma mulher linda, de aparência recatada, exageradamente séria. Mudara-se recentemente para a casa ao lado da sua, eles só se tinham encontrado uma vez antes, de passagem, numa manhã de quarta-feira, quando ele saía para o trabalho e ele notara que os dois eram igualmente bonitos, fortes e jovens. Agora era domingo de manhã, ele estava sozinho em casa, ela iniciara um bolinho pro João, quando ele voltasse do futebol no clube, lá pelo meio da tarde, e depois de iniciado o processo percebeu que necessitava de mais uma xícara de farinha de trigo para completar a medida, os mercados fechados, e ela se lembrara da vizinha do lado, o sr.... sr... sr... Fábio, certo?, tão simpático. Ele viu uma chispa diabólica nadar no olhar cândido da mulher, abriu a porta, ela entrou, ele fechou e trancou a porta, e convidou-a a que se sentasse no sofá. E a beijou. Surpreso, ou nem tanto, sentiu que ela estava muito receptiva.
Bem mais e totalmente super surpreendente foi a sua revelação. Nunca, nem em seus sonhos mais pornôs, ele poderia supor que uma moça tão branca e meiga pudesse ser tão rameira, puta, vaca, cachorra, leoa, faminta, enlouquecida, furiosa, máquina de amor, endurecedora de pau, cinco vezes até ele desmaiar e cair na sala, e ela sair fagueira com sua xícara, pronta pra fazer a sua massa, sempre pronta pra outra.
Ele ficou ali exaurido, chupado, depauperado, saudoso dela e de todas as mulheres do mundo que não eram suas e fodiam tão totalmente assim, estrangeiras, polacas, francesas, brasileiras e afins.
No ônibus trânsito transido atrasado atrás dos erros, B.A. (Bruno Aspiral) fica pirando de brinquedo, fazendo hora até chegar no bairro, na rua, na casa, na cama, dormir, está exausto.
Inventa uma versão para “Eu nasci há dez mil anos atrás” de Raul Seixas e Paulo Coelho, que fica cantarolando meio alto meio baixo, audível sem perceber (quase), irritando o carrancudo cara do lado, que rosna e reclama, mas ele não percebe, ou não liga, com a cara enfiada no vento da janelinha aberta, canta:
I was born
Ten billion years ago
‘N’ there’s nothing in this crazy world
That I really don’t know
Ao chegar ao seu ponto e saltar, Bruno percebeu que estava com fome, muita fome, muita fome. Entrou no primeiro bar que ainda estava aberto e pediu o prato do dia, costela, batatas, arroz, feijão e macarrão, que devorou como um pródigo/bêbado/náufrago/trôpego/trêfego/trágico/trópico/mágico/máquina/máximo/cínico, como fome de operário em cons------tru---------------------------ção.
De barriga caminhou  devagar  até em casa.
QUERIA uma mulher.
Queria uma mulher agora, nua, sua, mas era o meio da semana, ruas vazias, lua nova, e no outro dia tinha que trabalhar (pelo suposto) cedo de manhã.
Ele tinha muitos vícios bem cuidados:
1 – sexo
2 – cigarro
3 – café
4 – bebida
5 – rádio
6 – livros
7 – vitaminas.
Só não tolerava tv. Pegou o livro de K. Dick que comprara no sebo ainda esta semana, mas que nem começara a ler. Tentou algumas frases, percebeu-se distraído, largou o romance e foi deitar no chão, no escuro.
Ah, como ele queria uma mulher nua dançando em cima dele, agora.
Em 75, ele estava espiando a vizinha por cima do muro dessa mesma casa,
Até o dia em que ela o chamou e ele se escondeu com vergonha, não sabia que ela sabia que ele ficava escondido no meio dos cacos de vidro pontudos espreitando sua bunda arreganhada quando ela se agachava no tanque e no chão lavando roupa de shortinho com as bandas salentes, ele se sentia “o moita” dos adesivos e pichações dos muros naquela época (eram os alegres 70), algo + ou – assim:
O MOITA
Ela o chamou, era uma paraíba bunduda cujo marido estava trabalhando, e deu a sua sonhada e suada bunda pra ele, só o cu, até hoje ele nem sabe direito porquê, mas na época adorou assim; foi a sua desvirginização.
Em 1989 seus pais morreram num acidente de ônibus, uma batida, eles tinham ido comprar alguma coisa em algum lugar, e não voltaram. No dia seguinte ele se tocou e foi atrás, e ficou sabendo que dali por diante estava totalmente só no mundo, sozinho em sua casa básica.
Bruno comprou por um real e cinqüenta centavos um “caderno universitário” de cerca de cem folhas, que numerou de um a cento e oitenta e um, e que tinha na capa desenhado um cara com baique, óculos e capacete, e escritos os dizeres Sunrise e Be ready. O nascer do sol. Esteja pronto. Pra quê?
Nesse caderno, oculto na toca no oco da noite, sob a luz do toco da lâmpada de alguma brilhante idéia comum, ele escreve sobre suas mágoas, suas dúvidas e esperanças.
1996: a sua última decepção amorosa, de nome Dani Blue Jeans. Ele de novo se apaixonara, como uma velha enorme máquina, há algum tempo em desuso, e que, com esforço e aos poucos, se coloca de novo para funcionar. E ela... desta vez não fora outra paixão, não. Ela simplesmente não acreditava nele. Na importância dele pra ela, na verdade daquilo tudo.
Vontade de beber, vontade de transar, vontade de comer.
BA vai à cozinha e prepara uma enorme macarronada com molho pronto e queijo ralado, que come sentado na cama do quarto.
BA se sente como um inseto numa caixa, sob a lupa de um entomólogo, ou um paramecium observado por um estudante de biologia, através de um microscópio de fótons.
No entanto, está bem oculto, janelas e portas cerradas e trancadas, não há qualquer fresta, por onde alguém o pudesse espionar.
E aí ele se lembra de novo do conto que leu na outra semana, e que tanto o impressionou: “O Horda”, de Guy de Montpassant.
A noite não foi feita pra dormir.
Com certeza.
A noite foi feita pra amar, ler, escrever, sonhar, comer e ouvir música.
E agora o mais viável é ler, e ele lê o conto (que já leu, e o intrigou, e por isso e aquilo, ele agora o relê).
Termina de ler e fica mais, muito intrigado...
Pensou em visitar o Lúcio, para discutir o assunto com ele, um dia desses.
Três horas da manhã... agora precisava dormir, pra poder acordar acordado cedo, e trabalhar, no dia seguinte, quer dizer, daqui a pouco.
Mas o grilo do conto (e os outros) não o deixam em paz, e ele só conseguiu apagar quando as luzes do dia novo invadiram as frestas da casa.
Acordou com dor de cabeça, dor em cima do olho, na altura da sobrancelha direita, enjôo, gosto amargo.
Ficou assim olhando pro espaço sem saber ao certo quem era ou onde estava, e de repente se lembrou: o trabalho!
O dia já ia pelo meio, e ele simplesmente não acordara na hora certa, e a esta hora nem adiantava mais se adiantar, chegar atrasado, no meio da tarde?, seria pior do que faltar - e sem avisar.
Pergunta: BA tem medo de perder o emprego?
Trabalho e $ no Br está estranho de arrumar, isso apesar da incalculável riqueza natural do país.
P: Por quê?
Para que todos se conformem em ser escravos, e trabalhar exageradamente em coisas bobas, tolas, sem sentido, desperdiçando seu precioso tempo por medo de ficar sem comida. E ainda para que os países nazistas tenham coisas demais e comida demais para jogar fora todo santo dia, em troca de miserabilizar ¾ da humanidade.
Resposta: Mas BA não tem medo de perder o emprego.
Ele pensa: que se foda. Humanidade escrota e sociedade super-fascista.
BA (Bruno Aspiral) lembra de LP (Lúcio Polidoro, seu amigo alquimista), professoral:
- São sete as definições da matéria (as quatro primeiras são filosóficas, as outras três são científicas):
1 – a matéria como sujeito
2 – a matéria como potência
3 – a matéria como extensão
4 – a matéria como força
5 – a matéria como lei
6 – a matéria como massa
7 – a matéria como densidade de campo
Ele lembra que perguntara ao amigo, querendo aparentar sagacidade:
- E a definição alquímica, a oitava, como é?
LP se rira, se fazendo de tolo, como se não tivesse entendido, e partira para outros assuntos.
E aí? Faltamos ao trabalho, sua majestade semiótica. Que resta? Ligar para lá, inventar desculpa. Pega o relógio de pulso na gaveta, de corda automática, está parado numa hora verde da relva.
Vai à sala pé ante pé e vê no despertador (que não despertou porque não lhe pediu) que são só dez pràs onze.
Melhor não ligar.
Bom. Ganhamos um dia, uma tarde, de folga, com sentido. Isso é bem melhor do que desempoeirar fichas e ficar fixo na tela nauseante do micro. A sociedade dos micros e dos micos.
Que fazer?
E se eles o mandarem embora (com suas dívidas saldo do cartão cheques pré-datados e carnês?). Melhor nem pensar.
Amanhã inventa desculpa.
Hoje vai passear, pra arejar.
Mas o que realmente ocorre é que ele abre a janela do quarto par em par e se deita de shorte e deixa o sol bater sobre seu corpo como a purificá-lo, e fica a tarde inteira ouvindo rocks atuais numa rádio fm pop.
O relógio toca Fábio Leopardi, que se levanta despertando, como se estivesse dopado. Mas rapidamente faz seus preparativos matinais, e logo está no carro, tirando-o da garagem e levando-o à via que o leva até o centro da cidade, onde chega pontual ao emprego no Cadastro Integrado de Fatos Urbanos.
Ao entrar na sala a primeira pessoa com que dá de cara é a estagiária Laura, a loura, de olhos límpidos ar azul do céu, que faz história, se veste bem, cheira deliciosamente, e lhe responde “bom dia!”, com pacata timidez.
A preciosa pessoa... e ele diz bom dia, e ela responde um oi tão leve, quase que pluma que sopra dali, como se ela não o quisesse, e como se fosse tão barro grosseiro ele macho e maduro perto dela, ela tão ninfa e nereida, Leo teve que se segurar para não beijá-la, se declarar, cantar uma balada pop, agarrá-la, cair de cama, jogar tudo pro ar, morrer de amor, viver de amor, de amor renascer, chorar, gargalhar, pegar na sua mãozinha e sair pra passear.
Logo depois Bruno chegou, bem antes do patrão, um pouco antes dos demais colegas, logo depois de Laura e Fábio, atrasado para ontem, adiantado demais para amanhã.
- Bom dia. Bom dia.
- Bom dia.
- Bom dia.
O clima não estava tenso, nem ameno, para Laura um mero sinal de sua onipotente gostosura, para Fábio um corolário de sua emoção arrebatada, para Bruno um evento comezinho, comum, indefectível, ao qual já estava havia muito (mal-) acostumado.
Bruno, antes de entrar na sala, bateu seu cartão de ponto, não podendo deixar de observar três carimbos gritantes nas linhas do mês, em vermelho, FALTOU.
Depois de trocar três abobrinhas com o Fábio, Telúria e Selene (que estava chegando e não entrou no clima precedente, diluiu), distraído, sentou à sua mesa e começou a separar fichas, a pegar os rascunhos do trabalho de campo dos estagiários (que daqui a pouco iriam sair para a rua, fazendo pesquisa) e a passar com corretor e canetas os dados atualizados para as fichas antigas. Depois de revisar tudo ele as entregaria a Otacílio (hoje o atrasado era ele, rá!), que iria corrigir os arquivos correspondentes, no computador.
Nem reparou que Selene o encarava, mas pelas costas (o que é um jeito bem tortuoso de encarar, convenhamos), nem no cochicho que a ela dirigiu Telúria, nem no olhar de peixe morto de Fábio, nem no beiço desdenhoso de Otacílio. Agora ele só pensava em trabalhar, e bem, para justificar sua continuidade e status quo.
Logo depois chegou o Sr. Aloísio, chefão mais imediato, soltando fogo pelas ventas. Chamou Bruno Aspiral para a frente de sua mesa (o cadastro era uma grande sala sem divisórias, todos viam e ouviam tudo o que se passava), onde ele teve que ficar de pé e ouvir um belo esporro.
Ao sair do trabalho, no fim da tarde, pela primeira vez reparou na nova casa de doces - reparou mas não entrou, estava tão amargurado, pensou, doce pra quê?, pensou, entrar pra quê?
Acabou o trabalho, depois de mais alguns esporros nos bobinhos estagiários e no maluco do Bruno, Fábio desce a Calógeras em direção ao edifício-garagem, onde guarda o carro.
Antes ele costumava deixá-lo na rua, perto do prédio do CIFU, mas arranhavam a lataria, esvaziavam os pneus, uma vez quase foi roubado (encontrou o carro aberto, uma ligação direta iniciada, alguma coisa teria interrompido o furto praticamente realizado). Os guardadores eram cúmplices: extorquiam dinheiro dos proprietários dos veículos, sob a ameaça tácita de que se não lhes dessem previamente dez reais (ou mais) eles mesmos amassariam arranhariam furariam furtariam etc., no entanto, mesmo com o dinheiro sendo pago de antemão, eles se mandavam e deixavam os malandros se fartarem.
Como Fábio ficava nove horas (ou mais) dentro do prédio onde trampava, decidiu ser melhor, tipo investimento, deixar o automóvel no tal edifício-garagem, mesmo pagando, ou pagando mais caro, que na verdade saía bem mais barato (ou mais).
Pois bem. Fábio vai pela rua, olhando os transeuntes, algumas mulheres bonitas, a maioria das pessoas sem brilho, homens de terno (que na realidade não era terno em sentido nenhum, e sim costume, em todos os sentidos) olhando em volta com desprezo e desespero, pois se sentem superiores porque vicariamente têm alguma coisinha que outros não têm; homens mal vestidos e rudes olhando em volta com desespero e desprezo, pois se sentem inferiores porque supostamente acham que o não têm. Homens de paletó e gravata olham duro em volta, e não chegam nem um centímetro pro lado quando alguma outra pessoa vem pela rua pelo outro lado, não dão nem facilitam passagem, eles querem que todos se encolham e abaixem e rastejem e morram, de preferência.
Eles parecem que se sentem estrangeiros, ou os únicos patrícios, no meio da multidão de escravos pobres e metecos. Estes olham com dureza pràs pessoas, como se apenas homens embrutecidos na lida humilhada fossem machos de verdade, e como se só estes tivessem direito a algum(a)s graminhas de respeito.
Uns e outros olham com superioridade, ódio, nojo e desdém para as mulheres, qualquer mulher, todas elas (por quê?).
Fábio tenta mudar seu ponto de vista, ver o mundo melhor, gostar mais das pessoas, vai ver não é bem assim, não quer ficar como Bruno.
E está apaixonado.
Lembra que você aos vinte poucos anos fazia poemas?
Agora está desesperado de amor por Laura, a loura estagiária, e já não sabe mais o que fazer.
Ter que deitar do lado da mulher, transar com ela, dormir junto, falar o tempo todo, ter que dar resposta, ser visto por ela na sala, no quarto, enquanto está em casa, e a imagem de outra o tempo todo no pensamento, verdadeira obsessão.
E essa outra sem dar sinal, tantalizando-o, deixando-o sempre louco de desejo, na expectativa.
Chegar perto de cada pessoa é debruçar-se
Sobre um novo universo nunca visto, nem sonhado, nem sequer imaginado
Essa visão por si já vale a pena
De não ser entendido, de não entender, e todos os desencontros.
Seria muito bom se tudo correspondesse totalmente aos nossos desejos e imaginação
Mas seria uma boa droga também
Quer dizer, seria uma péssima droga, que não possuiria a sua principal virtude, que é de provocar barato.
Já essa desigualdade de todas as coisas e principalmente de todas as pessoas
É uma boa droga, pois nos faz delirar
Infinitos filmes do mais desvairado fantástico e da mais delirante fantasia
Todas as magias
As alquimias
As filosofias as ciências as artes as religiões e os delírios de outras tantas nossas regiões desconhecidas
São só uma imagem vazia
Da riqueza sem fim do espírito de que fazemos e somos parte.
As mulheres são estranhas, os homens são estranhos, as pessoas são feras selvagens.
No desespero ele pede ajuda aos céus e vê escrito em um cartaz (de propaganda de qualquer coisa, em que não presta atenção, só vê a mensagem): “Dê tempo ao tempo”.
Fábio entra no prédio dos automóveis como um robô em outro robô de robôs, mastigando essa frase vazia e oca e cheia de pré-matéria ou quintessência de pensamento e sentido e sentimento e en-ergia (o que há dentro do que se faz, para que se possa fazer), como uma gata masca um chiclê e ou uma vaca masca e remasca a mesma massaroca de capim e baba, atrás dela.
Bruno Aspiral gosta de andar de madrugada, quando as ruas estão quase que totalmente desertas, e ele pode se sentir bem, assim, consigo, o dono da cidade.
Não sabe explicar como ou por quê tem tanto medo das pessoas. Os homens e as mulheres por igual o mais das vezes são iguais e burocrático-funcionais, e quando extravazam são humorísticos em vários níveis de intensidade e tensão, o que pode ser nauseabundo e/ou tedioso e/ou repelente e/ou ambíguo e/ou muitas outras coisas que não podem nem devem te amedrontar.
Se sente limitado. Mas uma das coisas mais fortes que já aprendeu em seus trinta e nove (desmontáveis, montáveis, desdobráveis, infinitesimais, fractais e mais) anos de vida é que todos humanos são limitados, como países, basta observar que se descobre.
Será se o mundo se resume a coisas cretinas e humanos limitados?
Passo por passo, Bruno caminha pelas ruas do centro deserto devagar, costurando pelavras mal, um discurso indireto livre assim: O que você quer dizer? O que você quer saber? A característica mais marcante do mundo para você é que ele te diz respeito, e ao mesmo tempo não.
Tantos anos se passaram, e o que você entendeu? O que você falou? Não importa se você registrou tantos ou quantos anos de contribuição em qualquer trabalho, ou se você conseguiu alguma coisa como reconhecimento, dos outros, que outros?, esse bando de bêbados imbecis malucos.
O que realmente poderia te importar seria se você tivesse conseguido saber alguma coisa, ou dizer alguma coisa.
Mesmo aí você pode se aquietar considerando que, por exemplo, leu alguns livros e escreveu alguns livros.
Mas quem não vê que eles nada trazem além de palavras? Imagens, sensações, idéias, palavras, o fluxo fenomênico existencial, de qualquer um, o que é isto?
Meus problemas são iguais aos de todos os outros seres, e no entanto persisto em me empenhar por outra coisa, que dá a sensação de estar fugindo dos problemas, realização artística, trabalho, dinheiro, saúde, amor e filhos. Fica tudo em aberto esperando por soluções mágicas, ou muito mais tempo e empenho enquanto me ligo a problemas sem nome nem rosto, problemas que não importa resolver, mas desenvolver.
Qual é o seu problema? Timidez? Medo? Recalque? Diferença? Pouca, aliás, nada adianta ficar atribuindo nomes ou seja rótulos para essa sensação que te faz sentir deslocado em quase toda parte e faz com que você se segure e finja que disfarça o que quer fazer quando na verdade não faz, e por que não fazer e por quê fazer?
Provavelmente para se sentir bem num instante, mas o que adianta dourar um instante? Melhor seria transmutar tudo, fazer tudo, a vida toda ser puro brilho do sol, ouro puro, alegria e felicidade máximas. Isso sim faz sentido, por mais que pareça absurdo.
Bruno sente ódio, um ódio puro, tão espesso que dá para pegar, em torno de si.
Lembra de quem nunca esquece, de Dani Blue Jeans aquela escrota, piranha, vaca, puta, galinha, jaburu, gostosa, o amor de sua vida.
O que ela fez com ele...
O que ela fez com ele?
Não. Não quer ficar lembrando, repisando isso.
Agora é melhor sentir seu ódio e seu nojo, puros, perfeitos, esse monte de porcos, homens feitos, um esgoto imundo e foda.
Tudo muda e nada muda, isto é, tudo continua sempre igual a nunca, quer dizer, nada é como se pensa nem se pensa e se pensa que pensa é só a pretensão da imagem sem modelo e a linguagem não pode dizê-lo e o medo se esvai na noite só e acompanhado, ou acompanhado e só, a moeda dos dois lados, ou o lado tem duas moedas, ambas falsas, pela madrugada acordam, pelos mesmíssimos motivos, diametralmente opostos: Bruno Aspiral e Fábio Leopardi.
Bruno resolve que vai esquecer seu passado, suas desilusões e desconfianças, e seu presente de nojo e naja, e vai fazer amigos e arrumar um amor, pois nunca é tarde para a gente ser feliz.
Fábio se vê distante, fica à deriva, se sente exatamente uma ilha cercada de nada por todos os lados.
Ela... ela é foda. O nome dela é Laura. Ela é muito bonita, mas o pior é que não é só isso, o pior é uma sensação incontrolável, louca, que funciona como um furacão nele, e o puxa como o ímã mais poderoso do mundo para o lado dela. Só que ela não o quer...
Isso ele descobriu ontem.
Fez sexo com Ana e aí ela dormiu.
E ele ficou sozinho no escuro com vontade de chorar.
É uma droga ser emotivo.
Como pode um homem da minha idade se apaixonar assim?
E ele sabe que é amor, como ele nunca sentiu por ninguém. E ela parece que não sente nada.
Como pode ser?
A coisa mais estranha do mundo é dormir ao lado na cama de casal com a mulher que um dia se amou e com a qual agora se está acostumado.
A pior coisa do mundo é estar com uma pessoa pensando em outra, o tempo todo, pensando, pensando nela, como uma espécie de loucura fissurada.
Foi no dia seguinte daquele dos “Bons dias!” constrangidos que ele se abriu, pediu, implorou, vamos tomar um Martini no Verdinho Bar, estou muita atrasada ela falou, que droga, é só um drinkinho, meu namorado está me esperando, ela sempre com essa porra desse namorado de merda, como ele odiava o tal sujeitinho que nem conhecia, e que sabia que nunca no mundo poderia ser tão legal e tão especial e tão feito pra ela como ele, mas tudo bem, tudo tem seu momento, com muita calma eles conversavam a dois, ele tentando virar seu amigo pra poder virar seu amante ou namorado ou marido ou qualquer outra coisa que a sua loucura lhe exigisse, afinal o que mais valia a pena, hoje eu não posso beber, toma uma laranjada, eu preciso muito MESMO falar com você, é dez, quinze minutos, mulher sempre atrasa mesmo, tá, ela falou, legal, ela sempre é legal com ele, ele fica com essa certeza de que no fundo ou no raso ela o adora, então tá, saíram do trabalho lado a lado sem se tocar, como bons colegas de trabalho, e ele foi tentando fuxar conversa, viu aquele filme, ouviu a nova música do Gil, ela ouviu e viu tudo, até lhe contou o novo comercial do refrigerante Sukita, no qual um quarentão tenta em vão conquistar uma menina de vinte, até se criou essa gíria, esse aí é tio Sukita, e ele ficou meio sem jeito, achando que podia ser pra ele, afinal era essa mesma a distância que havia entre as idades dele e dela.
O garçom trouxe martíni e suco olhando pra ele com um certo orgulho cúmplice de macho como quem diz vai nessa tio Sukita!
Ele ficou quase meia hora rodeando o assunto, ela quase fervendo de pressa e impaciência, aí ele falou, com todas as letras e melodias, eu te amo, eu te adoro, eu preciso de você como o ar, o alimento, a luz e a água.
Ela riu na cara dele e falou se manca meu chapa e se mandou.
Fábio chorou imóvel sentado num bar no meio da Cinelândia.
No dia seguinte, Bruno chegou ao trabalho possuído de um ânimo novo, decidido a reconstruir as suas esperanças.
Pelo meio da manhã o chefão chegou e chamou-o a sua mesa. Outro esporro?
Pelo caminho engarrafado viu Otacílio meio rindo e Selene com uma cara de tempestade por vir. Outro esporro? E daí?
- Sim, Sr. Aloísio?
- Bruno, você está despedido.
- O quê?
- Despedido. Justa causa.
- Outro esporro?
- ...trabalho de merda, falta que só o caralho, é um irresponsável, sempre puto com o mundo. Não serve pro CIFU. Está despedido!
Bruno Aspiral sentiu o chão faltando sob seus pés.
Tal acontecimento foi um grão de loucura, plantado no terreno fértil para isto, que era a pessoa de Bruno Aspiral.
Saiu de lá furioso, foi beber num bar do centro. Não voltou pra casa, quando a noite caiu ele tomou a sua decisão, e foi a um posto de gasolina, onde inventou uma mentira qualquer pra comprar e levar um galão cheio do combustível.
No meio da madrugada chegou na porta do prédio onde ficava o Cadastro.
Chamou o vigia noturno, que dormia perto da porta, do lado de dentro.
- O que que você quer... ah, é o senhor.
- Boa noite, Macártinei. Tudo bem contigo?
- Tudo jóia. Mas o que o senhor está fazendo aqui a esta hora?
Então ele não sabe ainda da demissão de Bruno. Ótimo.
- Recebi um recado do chefão.
Macártinei não devia saber que ele não tinha telefone.
- Ele ligou prà minha casa, e me mandou vir pra cá urgente, que eu tenho que começar a preparar um relatório agora, coisa muito importante, que não pode esperar.
- Como assim?
- Eu preciso entrar no edifício, Macátinei, agora! Não discuta com o chefe!
- Não sei não...
- Se você me fizer perder tempo discutindo ele vai ficar furioso com você.
- Tá bem, seu Bruno, o senhor manda.
Assim que entrou e o vigia lhe deu as costas para trancar a porta, Bruno golpeou sua cabeça com um porrete que tinha escondido debaixo da camisa.
Teve pena do pobre homem e resolveu salvar sua vida. Arrastou-o até o outro lado da rua, onde o deixou deitado debaixo de uma marquise, como se fosse um mendigo dormindo.
Depois caminhou até uma banca de jornal na esquina, junto à qual tinha deixado o galão de gasolina.
A rua estava absolutamente deserta e ninguém viu seus movimentos.
Voltou a entrar no prédio, encostou a porta, subiu pela escada até o andar do Cadastro, esparramou gasolina sobre os arquivos, as mesas, as cadeiras, as estantes e os livros.
Depois riscou um fósforo e colocou fogo em tudo.
Correu descendo as escadas, escapando das chamas, que, em poucos momentos, devoravam todo o prédio.
Ficou um pouco na esquina vendo tudo arder e dando gargalhadas.
Depois, pressentindo que policiais e bombeiros deveriam estar chegando, saiu correndo dali. Não houve testemunhas, porém Macátinei Techera revelaria às autoridades que fora ele o autor do atentado.
Não importava. Sabia que não conseguiriam salvar o edifício, pois, além de muito papel e outras substâncias facilmente inflamáveis, havia ali também um grande depósito de material explosivo.
E justamente ouvia agora as explosões, que deveriam estar deflagrando o fogo por todo o quarteirão.
Amanhã muita gente boa poderia assistir à sessão da tarde da tv.