Seu Sebastião

Naquele dia, seu Sebastião acordou com uma disposição fora do comum. Abriu a janela para apreciar o cinza quase amarelado dos primeiros minutos da manhã. Apesar do grande e poluído centro urbano que o cercava, podia sentir, ainda, o perfume do seu jardim. Chegou a estranhar, mas com alegre surpresa, tanta disposição. Sentia as pernas mais firmes do que nunca; respirava fundo e sentia o ar fresco tomar por completo os pulmões e, além do repentino bem estar físico, sentia também que estava feliz, tinha completa sensação de paz na alma, de que nada lhe poderia tirar o ânimo naquele dia.

Como todo bom senhor de setenta e dois anos, seu Sebastião, viúvo, imigrante lusitano do começo do século vinte, um casal de filhos formados, casados e arranjados na vida, dois netos, aposentado, mas com boa situação pecuniária, tinha hábitos que não se alteravam há muitos anos. Levantava-se muito cedo, dava uma arrumadela simples na casa – morava só e a diarista vinha três vezes por semana para fazer o trabalho mais pesado – banhava-se, barbeava-se impecavelmente, vestia-se sempre com camisas claras de seda e calças cinzas ou azuis de linho, bem folgadas e com suspensórios, polia invariavelmente seus sapatos e só então ia comprar leite e pães. Apesar de existir uma boa padaria bem perto, seu Sebastião tomava um ônibus e ia a um grande mercado em outro bairro: “lá eles fazem o pãozinho mais gostoso do mundo, sempre quentinho... e eu não preciso pagar a condução mesmo...” E fazia isso com uma regularidade de horário tão mecânica que os ônibus, tanto na ida quanto na volta, eram sempre os mesmos. Os motoristas e cobradores e passageiros habituais do horário, todos já o conheciam. “bom dia, seu Sebastião...”, “lá vai o velho português comprar pão...” – e na volta – “lá vem o velho português com um litro de leite e três pãezinhos...” Então desembarcava no ponto da esquina bem em frente a uma banca de jornais, comprava o Estadão e pegava a Gazeta da Zona Norte, que era de graça, subia a rua transversal uns cinquenta metros, entrava em casa e ia direto para a cozinha preparar seu café.

Mas naquele dia, em irradiante estado de felicidade, sentiu profunda vontade de fazer coisas diferentes. Não que não gostasse de sua rotina, ele adorava cumprir sua estabelecida seqüência de afazeres, principalmente os matinais, mas naquele dia... não conseguiu achar explicação lógica, mas queria muito fazer outras coisas. Então seguiu os passos habituais até polir os sapatos e sair. Agindo quase instintivamente, tomou outra linha de ônibus com destino a uma estação de metrô. Decidiu que tomaria café no caminho, em algum bar ou padaria cujo ambiente lhe agradasse.

Ao descer do ônibus em Santana, lembrou-se de uma ótima e tradicional padaria, que ficava numa das principais esquinas do bairro e lá foi tomar seu desjejum. Abusou um pouco das gorduras e do açúcar, mas, afinal, sentia-se muito bem e não iria ficar preocupado com isso. Naquele dia não iria ficar preocupado com nada. Nada mesmo! Ainda no balcão, quis planejar o que fazer, mas não teve idéia. Resolveu fazer o que lhe desse nas telhas. “Bem, se vou fazer o que me der nas telhas, melhor ir prevenido!” Assim, antes de ir para o metrô, passou no caixa eletrônico do banco que ficava bem ao lado da padaria e sacou algum dinheiro. Seu Sebastião era muito controlado com dinheiro, fora assim a vida toda, por isso gozava de tranquila situação. Só que daquela vez ele iria fazer tudo o que lhe agradasse e não iria dar bola para o dinheiro, se tivesse que gastar quase nada ou muito, tudo bem, ele queria era sublimar aquele delicioso bem estar que sentia.

Embarcou no metrô em direção ao centro, ainda cedo da manhã. No vagão lotado, um rapaz cedeu-lhe o lugar. Seu Sebastião aceitou e agradeceu. Economizaria suas pernas para depois poder andar bastante, mesmo sem saber ainda o destino. Depois ficou reparando no rapaz e, com isso, durante a viagem divertiu-se com os próprios devaneios. Concluiu: “este meninote só pode ser bancário, caixa de banco... tem cara de caixa de banco... veste camisa de mangas curtas com gravata, mas não porta paletó... ostenta uma grossa aliança no anelar da mão direita... esses meninotes bancários são sempre do mesmo jeito, desde os meus tempos... assim que deixam de ser boys, contínuos ou escriturários e assumem uma posição melhor com mais responsabilidades e algum salário mais auto-suficiente, já vão ficando noivos e fazendo planos de família...” seu Sebastião ia tirando suas conclusões e divertindo-se; ao final desejou em pensamento que tudo desse certo para aquele rapaz e que fosse durante a vida toda tão feliz quanto ele, seu Sebastião, se sentia naquele dia. Desembarcou na São Bento.

Parado no Largo, ficou durante alguns minutos observando a imponente fachada do mosteiro, depois resolveu caminhar pelas ruas do centro velho. Começou a reparar na bela arquitetura dos antigos edifícios entre executivos e suas valises sempre apressadas: “que riqueza de detalhes... como é que a gente não tem tempo na vida de ver essas coisas!” Acabou chegando na Praça Antônio Prado e ficou impressionado também com o prédio da Bolsa, seguiu pela XV de Novembro, Boa Vista e vislumbrou o Páteo do Colégio. Visitou o Museu Anchieta. Ao sair, sentiu as pernas bem inteiras ainda. Continuaria o passeio. Era agora um feliz turista em meio ao turbilhonamento paulistano. Aquelas ruas e seus edifícios o fizeram lembrar da Cidade do Porto, sua terra, que visitara pela última vez numas férias há mais de vinte anos, com a diferença de não haver lá tanta gente correndo.

Saindo de um pequeno museu, lembrou-se, num estalo, de que não conhecia o grande museu: “que vergonha, seu Sebastião, mais de sessenta anos vivendo em São Paulo e nunca foste ao MASP! então é já!”

Atravessou a Praça da Sé, deu uma olhada rápida no marco zero e na catedral e desceu as escadas do metrô.

Não foi direto à estação mais próxima. Desembarcou na Brigadeiro para poder caminhar um pouco pela Paulista e fazer suas comparações entre o tradicional e nostálgico centro velho e o arrebatamento quase futurista do chamado centro novo. Caminhou lentamente, observando tudo o que pôde com detalhes. Reparou na magnificência dos prédios e da estrutura geral. É óbvio que seu Sebastião, ao longo de sua vida, já havia atravessado aquela avenida de ponta à ponta muitas vezes, mas nunca com essa visão romântica. “Toda essa parafernália e não há sequer um fio elétrico exposto... tudo subterrâneo... uma cidade abaixo do solo de uma avenida!” Sentiu então prazer e orgulho: “seu Sebastião, participaste disto! Vieste de longe e és um tijolo desta obra!” Quando se deu conta estava defronte ao MASP. “Acho que aposentado paga meia...”

Pagou meia e ficou deslumbrado com tudo o que viu. Fosse ele um autêntico apreciador de artes, saberia ser raro encontrar em qualquer parte do mundo originais de Renoir. Era a exposição principal exibida durante curto período e ansiosamente aguardada desde Monet e Rodin. No entanto, seu Sebastião, leigo das artes mas não de sentimentos, estava realmente maravilhado. Olhava fixo nos olhos da jovem camponesa representada em uma das telas: “tem vida, não é possível! essa rapariga está viva!” Teve que dar uma sacudida na cabeça para voltar ao mundo. Percorreu ainda todo o saguão principal da exposição antes de deixar o museu.

De volta à avenida, ficou um tempo parado avaliando suas aventuras até aquele momento. Sentiu-se ainda disposto. Era realmente impressionante sua vontade de continuar passeando. Mas toda aquela caminhada provocou nele uma nova sensação: um apetite voraz! “sim, hora do almoço sim senhor.” Já que estava dando uma de turista, resolveu continuar na brincadeira. Foi a uma cabine de informações ao turista e caprichou no sotaque: “ó, senhorita, podes indicar-me nesta região um bom restaurante de culinária típica lusitana?” A moça consultou rapidamente num terminal e lhe transmitiu o endereço. Era bem perto, numa das transversais que descem para os Jardins. “deve ser um restaurante muito caro... ora, vá catar coquinhos, seu velho rabugento!” E riu-se no caminho...

Realmente era um restaurante de luxo. Ao entrar, seu Sebastião foi recebido por um porteiro todo uniformizado e polido. Logo atrás veio o maître que o conduziu a uma bela mesa, toda paramentada: “ainda bem que meus sapatos estão brilhando, pois se não iam esses maricas pensar que sou um velho roto...” e riu-se de novo. Notou os talheres de prata e os cálices de cristal agrupados de acordo com as etiquetas internacionais, apesar de não fazer idéia de como eram as etiquetas. Simplesmente achou isso porque estava tudo tão arrumadinho que dava dó de tocar: “coisas de maricas”, pensou... Vieram nesse momento dois garçons, um com uma gigantesca carta de vinhos, outro com o menu. Seu Sebastião não quis olhar a carta de vinhos: - Dá-me lá um cálice de um Porto enquanto vejo o menu... Fazia um bom tempo que ele não degustava um vinho do Porto. Tomou mais uns dois cálices até que chegou o prato principal: um belo, grande e suculento bacalhau ao forno com batatas, couve tronchuda, regados com azeite virgem, acompanhado de arroz e uma garrafa de boa safra de um Casal Garcia rosé, que lhe fora indicada pelo garçom para acompanhar o prato. Sentiu-se um rei: “como é que não fiz isto mais vezes na vida...” e enquanto comia foi passando os olhos pelo ambiente. Era mesmo um belo lugar. Na outra ponta do salão, ao lado do balcão do barman, havia uma grande adega vertical, prateleiras de troncos escuros envernizados que ostentavam, caprichosamente deitadas à vinte graus, pelo menos uma centena de garrafas, vinhos realmente finos. Notou também que bem ao lado da adega havia um pequeno palco, àquela hora desativado, com dois pedestais de microfones: “acaso teremos sarau aqui?”

Terminou a refeição e chamou o maître, mas não para pedir a conta ainda. Fez um monte de perguntas... não chegara a beber nem a metade da garrafa... o que fazer com ela?... E aquele palco?... o maître, com toda a educação do mundo, informou a seu Sebastião que no jantar havia música ao vivo: fado da melhor qualidade. Seis músicos: violão, baixo acústico, duas guitarras portuguesas e um casal de cantores que todas as noites apresentavam ali os grandes clássicos da canção portuguesa. Quanto ao vinho, disse que se seu Sebastião desejasse jantar ali naquela noite, sua garrafa ficaria reservada. – Pois ponha uma etiqueta aqui nesta garrafa: Sebastião, meu nome é Sebastião! Virei esta noite apreciar um fado com caldo verde! – e pediu a conta.

Ao sair, ficou imaginando o que fazer até o jantar; queria aproveitar o máximo do dia, mas sem se cansar muito. Sentiu que o sol lhe ardia um pouco na cabeça de cabelos ralos, justo quando passava bem em frente a uma chapelaria. Parou na porta e ficou imaginando como seria sua figura de chapéu. Entrou. Provou uns quinze modelos diferentes. Ajudado pelo vendedor e pelo espelho, escolheu um tipo boné, de tecido leve, bem adequado a seu porte e idade. Pagou pela qualidade do produto e principalmente pela grife, mas ficou satisfeito com o resultado, estava aparentando idoneidade e até uma certa intelectualidade, ao mesmo tempo em que se protegia do sol. Subiu em direção ao Parque Trianon.

Numa grande banca de jornais comprou o Estadão e uma latinha de balas “Valda”. No parque encontrou um confortável banco abaixo de uma árvore, sentou-se e ficou folheando o jornal. Estava, porém, muito mais concentrado em seus próprios pensamentos do que nas notícias. Continuava sentindo aquele maravilhoso bem estar: “Deus, como estou feliz hoje!” E cochilou ali mesmo, sentado no banco do parque.

Despertou após uma hora, um pouco assustado. Respirou fundo, verificou as pernas, os documentos, o dinheiro... estava tudo bem: “esses lugares são perigosos, poderia ter sido furtado...”

De repente uma saudade dos filhos e dos netos... o filho, por razões comerciais havia se mudado com a nora e a neta para Florianópolis, há mais de três anos... mas a filha morava em São Paulo, com o genro e o neto mais novo, ali perto mesmo, nas Perdizes. Calculou que naquele horário ela deveria estar chegando em casa. Era quase fim de tarde. O sol baixo já deixava o céu com um tom amarelado, algo nostálgico, gostoso.

Seu Sebastião, com as pernas firmes ainda, atravessou a Paulista e tomou um ônibus para as Perdizes. Chegou de surpresa ao apartamento da filha. Esta havia acabado também de chegar. Saíra do trabalho na agência e já pegara o filho na escola. Ficou um tanto surpresa com a visita do pai em pleno meio de semana, mas não o bombardeou com perguntas inoportunas. Percebeu que o velho estava feliz da vida. Seu Sebastião quis saber do genro, e a filha respondeu que ele ficaria até tarde no plantão. Sentiu orgulho da família em que era o patriarca: a filha publicitária, o genro médico, o filho alto executivo de uma multinacional e a nora professora universitária... os netos, sem dúvida, seriam pessoas importantes. Então tomaram um café fresco com biscoitinhos amanteigados e seu Sebastião conversou e brincou muito com o neto, que lhe mostrou os cadernos da escola, sua coleção de figurinhas e brinquedos mais novos. Na hora de se despedir, já noite feita, o velho mentiu para a filha dizendo que ia direto para casa. Ela disse que o levaria de carro, mas ele recusou terminantemente. Abraçou o neto colocando-lhe no bolso uma nota enroladinha e cochichou: “não conta para tua mãe”. Depois que saiu, o menino correu para junto da mãe, mostrando empolgado que o avô havia lhe dado uma nota de cinqüenta.

Voltou de ônibus para a avenida Paulista. Passou na mesma banca perto do Trianon e comprou quatro cartões telefônicos. De uma cabine pública ligou para Florianópolis e gastou quase todos os créditos falando com o filho, a nora e a neta. Estes sim, o bombardearam com perguntas. Ouviam os “clics” a cada impulso, denunciando que seu Sebastião estava falando de um telefone público. Ele não quisera ligar da casa da filha para não criar alarde. “Por que o senhor não está em casa? Onde o senhor está? Já é de noite, sabia? O que o senhor está fazendo na rua à esta hora? Aconteceu alguma coisa? Está se sentindo bem?...” Explicou que estava tudo bem, que apenas tivera saudades e que estava passeando na rua mas já estava indo para casa... “pois a gente fica velho e começa a ser tratado como bebê. Qualquer telefonema um pouco fora de hábito e já pensam em tragédia!” De qualquer modo, sentia-se melhor ainda por ter falado com eles. Estava pronto para encerrar o passeio com um bom jantar, um bom vinho e boa música. Seguiu para o restaurante.

Foi recebido pelo mesmo maître, que quis conduzi-lo à mesma mesa do almoço. – “Alto lá! Desta vez eu gostaria de me sentar próximo do palco”- E assim foi. Apenas um dos músicos havia chegado e estava ligando uns cabos e fios. Seu Sebastião acomodou-se na mesa em frente do palco e mandou vir a garrafa reservada. Aos poucos a freguesia foi chegando. O barman passava um pano no balcão e ia ajeitando seus apetrechos. Logo os outros músicos chegaram também e foram tirando os instrumentos dos estojos, sob o olhar curioso de seu Sebastião. Um deles lhe foi simpático ao sorrir sinceramente, como quem diz “obrigado por prestigiar”, momento em que começaram a afinar as cordas. Depois de deixarem o palco “armado”, retiraram-se. Apesar de seu Sebastião degustar lentamente o vinho, ia-se já derradeira a garrafa. Pediu outra, dessa vez um tinto. De repente, acendeu-se uma ribalta. Já vestidos a rigor, os músicos colocaram-se em suas posições. Música enfim. Seu Sebastião recostou-se mais na cadeira e sentiu os músculos relaxarem. Caiu em agradável nostalgia, concentrado na poesia do fado:

“Ai, ai, Lisboa... me sinto à toa

quando me ponho solitário a te lembrar...

e os meus olhos são duas fontes

iluminadas de intenso marejar...”

Marejaram-se mesmo os olhos lusitanos. Saudades da patroa. Seu Sebastião começou a recordar tudo o que passara ao lado daquela que fora sua primeira, única e eterna companheira de toda a vida. Mulher forte mesmo. Grande amiga, grande mãe, grande paixão... desejou que ela estivesse ali com ele. Puxou uma cadeira vazia bem para seu lado, passou o braço pelo encosto e fez de conta que ela estava ali... convenceu-se de que ela estava ali. Estavam abraçados, tomando vinho e ouvindo música. Sussurrou à cadeira: “ainda temos a noite toda para namorar...” mais alguns minutos de devaneio... procurou lembrar-se apenas dos bons momentos, que não foram poucos. Viu que sua vida tinha sido perfeita. Com todos os percalços que podem haver numa vida de trabalho e sacrifícios, mas perfeita. Sussurrou novamente para a cadeira: “vamos tomar um caldo verde para refazer as energias...”

Chamou o garçom e pediu um caldo verde bem caprichado, com fatias de pão para acompanhar. Voltou a atenção à música de novo: “opa, essa eu conheço”. Cantou junto:

“De quem eu gosto nem às paredes confesso

e nem aposto que não gosto de ninguém.

Podes rodar, podes chorar, podes sorrir também,

de quem eu gosto nem às paredes confesso...”

Enquanto tomava o caldo, ia relembrando todo aquele dia maravilhoso, desde a hora em que se levantou da cama e respirou fundo sentindo uma felicidade fora do comum. Fizera então coisas diferentes de seus hábitos, o que lhe “dera nas telhas”. Quando caiu em si, percebeu que relembrara naquele dia toda a sua vida, como se estivesse assistindo a um filme, agora nas últimas cenas. Era o roteirista, o diretor, o ator principal... história verídica, fatos reais... últimas cenas... última colherada do delicioso caldo... último gole do requintado vinho... luzes da ribalta refletindo o último fado... enfim o cansaço, o corpo levemente amortecido... sono... a conta... um táxi.

Fez enorme esforço para não dormir ali no táxi mesmo. Desceu na porta de casa. “Meu nome é Sebastião”, disse ao motorista no momento em que pagou a corrida deixando boa gorjeta. Foi se livrando das roupas a caminho do banheiro. Tomou um banho reconfortante, vestiu o pijama e deitou-se. Sentiu todos os músculos tremerem em pequenas cãibras. Não doloridas. Eram até agradáveis... sensação de repouso. Nem tocou no seu livro de cabeceira. Novamente avaliou o dia transcorrido: “tudo o que me deu nas telhas...” a vida... os filhos e netos perfeitamente encaminhados... o filme de história real com final feliz... um chapéu de grife novinho... as últimas cenas... o último caldo verde... o último vinho... o último fado: “ai que saudade da patroa!”... sensação de profundo repouso... o sono veio a galope... inspirou fundo... sentiu o ar tomar por completo os pulmões... expirou fundo... para sempre.

A diarista chegou de manhã. Dia de faxina pesada. Abriu a porta com sua chave, o que era habitual, pois ela chegava sempre num horário em que seu Sebastião já haveria cumprido parte de sua rotina matinal e estaria comprando seu leite e seus pãezinhos. Logo que entrou, a boa senhora de plena confiança tropeçou em algo. Os sapatos polidos de seu Sebastião. Assustou-se. Viu então aquelas roupas espalhadas pelo chão. Reconheceu a camisa, as calças, mas... e aquele chapéu? seu Sebastião não usava chapéu. Sentiu um aperto no coração. Tudo muito estranho. Esperou meia hora, tempo suficiente do patrão chegar do mercado. Nada. Esperou mais meia hora. Nada. Teve um pressentimento horrível. Invadiu o quarto. Lá estava seu Sebastião. Aproximou-se. Deu um grito abafado. A gente nunca conta com a morte... ali, na nossa frente. Ele tinha um belo sorriso no rosto. Ela fez apenas o primeiro telefonema para a filha e o genro de São Paulo. Eles tomaram todas as outras providências. No começo da noite chegaram o filho, a nora e a neta de Florianópolis. Foram do aeroporto direto para o velório.

Seu Sebastião tinha agora a seu lado toda a família reunida. A cena derradeira do filme. Estava mais feliz do que nunca naquele dia.