SERRANO CARBURETO (Classificada no Concurso da Mercedes Benz e Anjos de Prata)

Não teve jeito. De nada adiantou os conselhos e os apelos chorosos de mamãe. Deco e eu acabamos seguindo a profissão do nosso pai. Minha mãe bem que insistiu para que levássemos a sério os estudos, mas nosso pai seduzia-nos com seus relatos sobre as viagens que fazia. Tudo aquilo que ouvíamos dele, era deslumbrante! Também, a concorrência era desleal: viagens e aventuras; escola e deveres. É claro que o fascínio por caminhões venceu. Além de nós três, tinha mais dois motoristas de caminhão na família. Os primos Olavo e o Bento. Realizei meu sonho de ser caminhoneiro. Cortei as estradas do Brasil de norte a sul, de leste a oeste. Transportei as mais variadas cargas. Da mais delicada a mais perigosa, conduzi. Hoje estou aqui, casado, menino no colo, fazendo uma retrospectiva das minhas viagens...

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O que me moveu, realmente, a ser motorista foi desejo de conhecer o Brasil. Ouvia meu pai e amigos falarem das cidades por onde passavam, de como as praias de Maceió eram lindas, das paisagens das cidades. Isso me contagiou, sou apaixonado por praia. Gente da serra é assim, adora uma praia! Minha primeira viagem foi para Maceió, fui de carona com meu amigo Niko para aprender o caminho e as manhas da estrada. Coração estava a mil! Achei uma beleza quando o Niko se cansou e passou a direção para eu levar o caminhão. Aos dezoito anos, foi a primeira vez que senti que já era mesmo, homem feito. Você não faz idéia do poder e da liberdade que se sente em cima de um caminhão. Uma coisa interessante de mencionar em Maceió, é que por bom trecho percorrido, só avistamos canaviais imensos. Canaviais infindáveis. De repente, nossa vista é surpreendida e somos contemplados com uma belíssima praia. Aquilo foi a minha recompensa e motivação para certificar-me que era mesmo a vida que escolhi seguir. Niko instruiu-me que depois de setecentos quilômetros rodados, precisamos abastecer nossa máquina. Paramos num posto, enchemos o tanque, demos uma geral e voltamos para estrada. Aprendi sozinho, que a vida de motorista, é corrida. Não se pode perder tempo num posto para descansar, senão na hora de receber, não compensa. Além de que, conforme a mercadoria que se transporta, quanto menos parar, melhor. Como era nosso caso, transportávamos frutas de Maceió para o Rio de Janeiro. Aprendida as lições da estrada, chegou o dia de viajar sozinho. Meu corpo, coração e mente, era adrenalina purinhazinha! Seguia para a Bahia transportando cimento, num Truck Carroceria 1997. Peguei a 116 para ir pelo litoral, ver as praias, é claro!

Chegando a Vitória, vi uma senhora idosa pedindo carona. Convencido de que não haveria mal algum, parei no acostamento e dei a carona. Conversa vai, conversa vem, dez minutos depois a idosa pede para parar porque esqueceu a carteira de documentos na lanchonete do posto. Mesmo achando estranho aquele assunto, atendo ao pedido. Desço, abro a porta para ela que se despede com um sorriso meio suspeito. Fico meio cismado, mas despeço-me e volto ao volante. Pelo retrovisor, vejo aquela idosa correndo e entrando num Gol. Imagino que tenha conseguido uma outra carona de volta para a lanchonete para buscar seus documentos. Mas quando volto a ajeitar o retrovisor, percebo o porta-luvas aberto e sinto falta do meu mp4, da máquina fotográfica e de alguns trocados que deixo separado para uma emergência. Nunca me senti tão trouxa na vida! E olha que o Niko cansou de me alertar sobre golpistas nas estradas! Como pude ser tão ingênuo? Pensei em voltar, mas não adiantava. A tal velhinha, era uma vigarista. Pus a cabeça para fora do caminhão e gritei para extravasar minha ira diante do meu desconforto:

-Ah, sua véia fia da zunha!!!

Eu tinha acabado de ser "batizado" pelos golpistas... Carona não daria nunca mais para ninguém, isso era uma certeza! Já era bem tarde, precisava parar para comer alguma coisa e cochilar. Tirar uma pestana. Motorista não dorme, cochila. Temos meta e prazo a cumprir. Parei num posto de grande movimento, pois são os melhores. Nesses postos o atendimento é de primeira. Eles fazem de tudo para segurar o cliente. Dão até brindes. Ganhei camiseta, boné, uma tolha e creme dental. No posto, encontrei com alguns conhecidos e aproximei-me deles para ajeitar a bóia . Tinha levado comigo algumas lingüiças e ovos para preparar. Só que o álcool que usava para fritar ou aquecer os alimentos, havia acabado. Não lembrei de comprar outro. Pedi a um dos conhecidos que me arranjasse um pouco do dele. Um outro amigo, o Zóia, falou que tinha uma coisa muito melhor e que aquecia mais rápido. E me deu um pouco da sua ?poção mágica?. Era carbureto. Achei esquisito aquilo, mas a fome não deu condições de questionar. Peguei uma panela velha no caminhão, depositei o carbureto dentro, e na frigideira coloquei óleo e as lingüiças. O Zóia vem e oferece para acender para mim. Aproveito ajuda dele para ir ao banheiro. Quando volto, sinto um cheiro horrível, enjoativo, sufocante. Alguns dos caminhoneiros estão ali, reclamando do cheiro desagradável, outros dando gargalhadas. Teve um, por causa do mau cheiro, estava vomitando até a alma! Segui caminhando em direção às minhas deliciosas lingüiças e o mau cheiro aumentava... Aquela peste de carbureto estava catingando tudo a minha volta. Peguei um jarro de água para apagar o fogo. Zóia gritou que não! Mas querendo eliminar o cheiro ruim, despejei a água na panela. Para meu azar, o fogo aumentou demasiadamente e avançou sobre a frigideira com óleo e minhas lingüiças, que viraram carvão. O cheiro insuportável tomou conta do local. Zóia, então falou:

- Quanto mais água colocar no carbureto, mais o fogo aumenta, Netinho!

- E agora que você me fala? ? respondi contrariado.

Fiquei chateado, mas não resisti e caí na gargalhada! Voltei para junto dos meus amigos caminhoneiros que, solidários, dividiram comigo a bóia deles. Contei-lhes sobre a danada da velha e brinquei que o ?trote? do caminhoneiro de primeira viagem foi dos bons! Primeiro ser roubado por uma velhinha e depois estragar a bóia com o carbureto... Só mesmo eu para cair na idéia do maluco do Zóia! Após saborear um pouco de tudo que me deram, numa mistura brasileira: feijão tropeiro, canjiquinha com costela de porco, moqueca de peixe e farofa, fui para o caminhão descansar. Era meia noite e acertei o relógio para duas da manhã. Ainda cheio de sono, corpo dolorido, pelo sofá-cama do caminhão. Desperto com o alarme do relógio ingrato. Dirigi-me até o banheiro, lavei rosto. Para despertar, fui até a cantina beber um gole de café. Logo vieram os outros companheiros de estrada, todos amarrotados. Roupa e cara amassados. Aos poucos, vão reanimando para pegar no volante outra vez. O borracheiro veio e conferiu os pneus do meu caminhão. Olhou para o frentista, depois para mim com ar gozador e contou que meu apelido naquele posto era Serrano Carbureto. Nem precisava explicar. Era da região serrana do Rio e com o episódio do carbureto, não iam perder a oportunidade de criar história. Até que achei bom porque estava criando ali, um elo entre mim e os trabalhadores do posto. Despedi-me e segui meu destino, na alta estrada até Bahia.

* * *

Meu filho, que dormia em meus braços, desperta e pergunta se sinto saudades dos tempos que dirigia caminhão. Respondo que sim. Não fosse o acidente que prejudicou minha coluna, tirando-me da estrada, certamente estaria indo e vindo, feliz da vida. Devido ao acidente na coluna, não realizei o sonho dirigir um cegonheiro. Ficava me imaginando conduzindo um cegonheiro de até 22 metros de comprimento. Cheio de carro novinho. Zerinho, zerinho. Quem dirigiu um desses, diz que é uma emoção danada de boa! Quando vejo meus amigos em cima de um caminhão de cargas ou os cegonheiros, meus olhos se enchem de lágrimas e meu coração, de saudades. Ser caminhoneiro foi o sonho que se tornou realidade para mim, mas não é que desejo mais para meu filho, depois do meu acidente. Evito falar-lhe das maravilhas da estrada. Digo a ele que deveria mesmo ter seguido os conselhos de mamãe para continuar os estudos.

Agora, mesmo tendo sido muito feliz como motorista caminhão, quando recordo as doces palavras da minha mãezinha, só me vem a mente a canção de Dorival Caymmi:

"(...)- Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia..."