Canis et Circensis – Liber factus est
Mal se abria a porta e lá vinha ele, todo saltitante, abanando desesperadamente sua cauda, mostrando para seu dono o quanto estava satisfeito com a sua chegada. Mas após alguns afagos em sua cabeça, logo era preso na lavanderia, com aquela máquina barulhenta cheia de água se sacudindo e espumando a seu lado.
Tob, este era seu nome atual, era um cão de porte pequeno, pouco pêlo, mansinho, enfim, “próprio para apartamento”, como sempre escutara.
Fora comprado numa dessas feiras de animais, onde todos ficam em gaiolas, desde pássaros, coelhos, gatos, cachorros, iguanas e até Ferrets. Estes últimos viraram moda, pois dizia-se serem muito indicados para crianças super-ativas, segundo o Fantástico.
Tob viveu, ou melhor dizendo, sobreviveu, cinco longos meses em companhia de Leandro, um garoto de três anos que pedira insistentemente aos pais um cachorrinho. Como os pais haviam negado inúmeras vezes, Leandro então pedira um irmãozinho. e os pais optaram pelo cachorrinho. Deram-lhe o nome de Pitoco.
Depois de muito ser amassado, empurrado, ter sua cauda e orelhas puxadas, sem poder esboçar nenhuma reação, pois seus donos sempre o colocavam preso na lavanderia caso o fizesse; ter que ir mensalmente até o pet shop e agüentar aquele zunido em seus ouvidos e o ardor de seus ferimentos, graças à “moça boazinha” que cortava seus pelos, Pitoco escapa, do mesmo pet shop, ainda com metade dos pêlos cortados e sai pelas ruas em uma disparada que ninguém poderia alcançar. As pessoas que o viam, se afastavam horrorizadas, pois presumiam se tratar de um animalzinho doente, pois estava com metade dos pelos compridos, todo molhado e a boquinha ainda espumando aquele “remedinho para pulgas” que a “moça boazinha” insistiu em colocar em sua boca.
Corre quilômetros, com uma força que não sabia possuir. Começa então a descobrir um mundo real, o qual só teria a sensação de já conhecer pelas vezes que o sentira através da janela do carro.
Nestes dias de aventura, passou por situações de muito entusiasmo e muito medo também.
Houve a vez que descobrira um lugar onde poderia ficar observando, com água na boca, lindos pedaços de carne se movimentando dentro de uma vitrine. Depois, rapidamente, se alimentava das sobras caídas ao chão,antes que alguém viesse enchotá-lo com uma vassoura, depois de dizer: -Vendo televisão, meu chapa?
Passou também por apuros quando foi perseguido por outro cão, o dobro de seu tamanho, só porque atravessara aquela rua. – Vá procurar outro território, se gosta de viver. – Esbravejava o outro cão, com ferocidade.
Mas do que Pitoco gostava mesmo era das tardes, pois era o horário onde as pessoas colocavam aqueles sacos cheios de comida para ele na calçada. - Que pessoas boas, pensava ele. Sempre alimentando os animais.
A cada dia nas ruas fazia com que seu círculo de amizade aumentasse.
Era o seu “Branquelo”,da padaria, que todos os dias pela manhã lhe jogava aquele pãozinho quentinho; a dona “Gorducha”, que as vezes lhe atirava aqueles biscoitinhos deliciosos de sua janela; havia ainda a “pequenina, que sempre lhe afagava os pêlos e dizia, “que cachorrinho bonitinho. Como está hoje meu amigo?”
Pitoco então passou a freqüentar a mesma rua todos os dias, onde uma senhora lhe colocava aquela comida diferente, limpinha, cheirosa, ao lado do potinho d’água.
Com o tempo, Pitoco perdera o receio que tivera no início e já fazia a mesma festa que fazia para seu antigo dono, quando a ‘senhora da comida cheirosa”se aproximava.
Houve então o dia em que essa senhora o pega, leva-o para sua casa e lhe enche de carinhos e brinquedinhos. Mas num dado momento ela some e aparece com aquele pedaço de sabão azul e de pano em suas mãos. Pitoco logo percebe o que está para acontecer.
Tenta uma fuga rápida, mas percebe também que seu esforço é em vão, pois já se via trancado dentro daquele lugar de onde caia aquela água quente do teto. Não teve jeito. O que lhe restava era aceitar. Depois até gostou do banho quentinho.
Mas o que se seguiu foi um verdadeiro terror.
Lá vem aquela senhora com aquele aparelho barulhento, soprando o “ventinho gostoso”, como ela dizia. Se era gostoso, porque então ela não secava suas orelhas também com aquela coisa quente e barulhenta.
Passear, somente, com aquele pedaço do que já fora um animal, preso e apertado em seu pescoço, fazendo-o ir para onde sua “guia” quisesse e obrigando-o até a fazer suas necessidades quando e onde era determinado pela “senhora da comida cheirosa”.
Pitoco tentou de todas as formas escapar. Os dias se seguiram e cada vez mais ele se tornara rabugento, não querendo comer, não querendo carinho, nem os brinquedos e arranhando a porta de saída, num desespero de voltar a sua liberdade.
Sua nova dona ficara preocupada com tal comportamento e achando que o cãozinho pudesse ataca-la, num próximo banho, resolveu leva-lo a um pet-shop. Assim ele iria acostumando, pois teria que tomar um banho por semana, afinal era um “cachorro de apartamento”.
Lá foi ele, amarrado no banco traseiro do carro, com as janelas fechadas e aquele vento gelado em seu focinho, que o fazia espirrar durante todo o trajeto.
Chegando ao destino, logo se sentiu feliz, pois notara que aquele local era mais do que conhecido por ele, que sabia que, após cortado metade de seus pelos, a “moça boazinha” iria se virar para limpar aquela máquina barulhenta e ele poderia correr por aquela porta sempre tão bem localizada e aberta.
Luciana Celiberto