O homem que gargalhava

O homem que gargalhava era um mistério e seus rompantes de felicidade disseminam-se pelas ruas. Dono de uma poderosa gargalhada, cuja existência já chegara a lugares inaudíveis, era única. Fantasticamente sonora, prolongava-se por minutos e, enquanto se prolongava, ia se alternando, ora mais alta, ora mais baixa, fininha, grossa, com pequenas pausas, às vezes quase como soluço. Era sem dúvida uma gargalhada jamais vista por aqueles lugares tristes. Há quem diga que já ouviu, logo de manhã, uma pequena gargalhada recém acordando, sonolenta e a bocejar. Outros, ao longo do dia, contavam que em algum escritório onde imaginavam que ele trabalhava escutavam-no da rua e dos departamentos vizinhos. Diziam ainda que os passantes ou algum cliente que ali chegava se assustavam com gargalhada tão poderosa. Mas logo eram informados de quem se tratava e o susto dava lugar à satisfação de ter alguém por perto tão feliz. Mas todas essas informações careciam de provas e caíam no dito pelo não dito.

As pessoas viam nele um estimulante para seus dias amargos, para as noites em claro, para as horas cinzentas. Podiam estar deprimidas pelos mais variados motivos, mas bastava ouvirem a grande gargalhada para sentirem as mudanças de ânimo que ela proporcionava. “Como pode alguém estar sempre rindo?”, pensavam alguns. “Nossas dificuldades são tão grandes, nosso povo sofre tanto e esse camarada rindo, como se desconhecesse a angústia”, questionavam-se outros, incapazes de acreditar num sorriso perpétuo.

Na verdade, nada sabiam sobre o homem que gargalhava. Sua vida era um enigma. Perguntavam-se se era casado, se tinha filhos e, se os tivesse, se gargalhariam como o pai? E a mulher? Será que suportaria um marido que vivia rindo? Imaginavam o homem sorrindo e a esposa desesperada com as contas do mês a pagar, com os filhos doentes, com seus próprios dias (dela) de mau humor, com as tarefas da casa, com a reclamação dos vizinhos que não conseguiam assistir televisão por causa do barulho que o marido fazia. Sem contar com os aborrecimentos que teria com o próprio cônjuge que não parava de rir um só minuto.

Como ele faria para comer? Engasgaria na certa, seja lá quantas refeições fizesse por dia. E ao dormir? Conseguia dormir?

Imaginavam mil situações, mas não chegavam a uma definição clara daquele ser acerca do qual muito se falava mas pouco se conhecia. E esses poucos que o conheciam também eram difíceis de serem encontrados. A esposa, que poderia dar alguma informação mais precisa, não era localizada. Alguns mais afoitos procuravam vestígios da mulher. Pesquisavam junto à comunidade. Interrogavam senhoras que passeavam pelas ruas, tudo no intuito de dar às pessoas uma explicação plausível para aquele fenômeno. Milhares de mulheres foram entrevistadas e todas admitiam, tristes, não ser a mulher do homem que gargalhava.

– Não tivemos esta sorte de ter um marido com esse humor elevado. Nossos maridos são carrancudos, vivem zangados com tudo. Conosco principalmente.

Não conseguindo explicação, os moradores chegavam, mesmo, a se irritar, menosprezando aquilo que até então parecia ser um ato divino. De onde ele viera, como começou toda aquela sinfonia “gargalhante”... era difícil de precisar. Era como se ele existisse na natureza, oculto, mas onipresente, circulando pelo ar, dando novo norte para quem já não sabia o que era isso; ensinando a sorrir quem nunca sorrira ou relembrando àqueles que haviam esquecido. Diriam os céticos que ele nunca existiu e que seria uma invenção, uma ficção para deixá-los absortos da realidade, para não sofrerem com as angústias do cotidiano repetitivo, não caírem em contradição, não verem as coisas de outro ângulo, não reclamarem, não protestarem. Inventam-se tantas coisas: essa seria mais uma criação do homem para manter seus semelhantes com ânimo, altivos e ativos, e não sucumbirem de vez no marasmo que enreda o drama de suas vidas. Criam-se entorpecentes, jogos, dramas televisivos, tudo com o intuito de mantê-los alegres e indiferentes à morte. O homem que gargalhava seria mais uma mágica para nos refugiarmos.

Seja qual for sua origem, a verdade é que ele foi por um bom tempo o motor que impulsionava aqueles seres arrasados, cabisbaixos, entediados e, por isso mesmo, sem riso algum. Quando surgiu, um vento cortante levantava poeira naquele mês de julho, misturava-se à fuligem das queimadas de cana e juntamente com aquele friozinho incômodo completava um quadro desolado, tomado de pura melancolia. Contudo, um pequeno sorriso de canto de boca, muito tímido, iniciou a derrocada de todas as tristezas possíveis e imagináveis.

Os rumores de que se tem notícia é de que a partir desse dia aos poucos seu sorriso foi se alargando, ganhando contornos inesperados, com uma sonoridade já audível a pouca distância. Envolveu primeiro os de sua rua e, paulatinamente, foi atingindo todos do bairro. E quando menos se esperava, atingia os mais recônditos lugares. Chegava aos becos onde mendigos esperavam um prato de sopa no frio. A gargalhada lhes supria o alimento necessário, não do corpo, claro. Deslizava por cubículos, sorrateiramente; embalava crianças, brincava com os cães, insuflava corpos descarnados de velhos raquíticos que se contorciam a não poder mais de tanto rir, impelidos por um estímulo feito de puro reflexo; não conseguiam frear o riso depois de tanto tempo de esquecimento. O velho Garrastazu, com muito custo, se deixou influenciar por aquele elixir da juventude e seus lábios se despregaram e surgiram, enfim, os dentes falhos na boca murcha e no entanto quase iluminada. Senhores sisudos, proprietários de grandes corporações, viram suas estruturas irem ao chão, como se um terremoto os atingisse no centro de suas fortificações. Máscaras inoxidáveis avessas à alegria e à diversão caíam uma a uma.

Um vereador, por sua vez, viu naquele homem um forte candidato para as próximas eleições. Resolveu procurá-lo. Suas buscas se desdobraram em centenas de pessoas que, contratadas, vasculharam cada centímetro de terra, dos bairros mais nobres às vilas mais periféricas. “Pago bem”, prometia. No começo, houve festa, música, porém, com o passar dos dias o desânimo os foi abatendo – nada, nenhuma pista de quem pudesse ser aquele sujeito. Perderam a noção e o sentido da busca. A população, extenuada, dava sinais de desalento. Cansada de promessas e descrente que encontraria aquele que lhe parecia a figura de um fantasma, algo abstrato, metafísico, amaldiçoou o oportunista que a fazia cair na tentação, a fazê-la pôr-se à venda e a seu tempo, seu pouco tempo, o pouco tempo que ainda tinham do resto de suas vidas. Enxotaram-no para fora da cidade e a casa do vereador foi apedrejada.

A gargalhada poderosa já não mais os alegrava. Viam nela um estorvo. Sua musicalidade, suas diversas tonalidades poderiam divertir uma fonoaudióloga, por exemplo, não à massa que se voltava para os seus instintos mais primitivos, indiferente à abstração e dedicada tão-somente à objetividade dos fatos. Sua eloquência, sua espiritualidade, seu eterno devir jaz então no esquecimento. A gargalhada divina, que por uma fração ínfima da eternidade iluminou os quatro cantos do mundo, de repente, silenciou. A quietude estacou de forma seca e áspera na audição de cada ouvinte. Escutaram esse silêncio e retomaram as atribuições do dia-a-dia. Os mendigos voltaram à sopa matinal e as crianças, novamente, a brincar. Ninguém mais se lembrava do homem que gargalhava. E acharam melhor assim.

Odair Albuquerque
Enviado por Odair Albuquerque em 13/09/2008
Reeditado em 17/06/2013
Código do texto: T1176527
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