Uma vela para Santo Antônio
Quando a viu pela primeira vez, entrando na sua mercearia, Manuel se encantou com Jacira, sua vizinha de quarteirão. Ela devia ter 18 anos e aparentava ser descendente de índio e ele tinha 38, descendente de português.
No seu aniversário de 42 anos, já sentia estar apaixonado por ela desde os 38, mas a esposa e os dois filhos não notaram nem a data, todos envolvidos na administração da mercearia, que agora era Mercado.
Manuel cuidava com esmero eles não notarem toda vez que Jacira fazia suas compras, ele pôr, na sacola, guloseimas e outros presentes, com seu melhor sorriso, enquanto o dela, ao perceber o galanteio, nem aparecia.
No mesmo dia de seu aniversário de 45 anos, que ele comemorou sem a sua família, na casa de um compadre, soube que Jacira tinha juntado suas coisas com o entregador de água do bairro, um motoqueiro magro e mal vestido que ouvia o rádio amarrado no guidão, em alto volume.
De longe, ele via Jacira, que deixara de fazer as compras no seu Mercado – agora Super-Mercadinho –, passear pelo bairro aos domingos de manhã, montada na motoca que o entregador de água conduzia com o orgulho de um piloto de Harley-Davidson. Mas Manuel cuidava que mais ninguém soubesse da melancolia que seu amor lhe provocava, e escondia sua impotência principalmente aos seus empregados, alguns conhecidos de Jacira – mas graças a dois deles, Manuel sabia de quase todos os acontecimentos no relacionamento do casal, pelos comentários que ele disfarçadamente estimulava nas conversas.
Três meses se passara e seu coração se encheu de esperança ao saber que o casal não estava passando bem.
Passado mais um mês, quando Jacira apareceu no Super-Mercadinho, estava diferente, mais séria, muito gorda, parecia não estar passando bem, e o coração dele se rasgou um pouquinho, de pena. Se não tinha coragem para falar, podia chorar sua mensagem e seus olhos se encheram de lágrimas. Percebendo, ela demonstrou seu incômodo com silêncio e expressão aborrecida.
De repente, Jacira demorou a voltar. E quando o fez, naquele dia, Manuel, à beira das lágrimas a viu entrar com um aspecto mais doentio e, na hora de pagar as despesas na caixa, ela contou moedas para pagar a modesta compra. Ele, num descuido da esposa e do filho gerente, colocou algumas notas na bolsa dela. Ela não percebeu na hora. Mas no dia que voltou ao mercado, disse. “Obrigada, comprei os remédios que precisava. Mas não faça mais.” O coração de 46 anos de Manuel, se apertou de melancólica alegria e angustia.
Semana passou e soube que ela tinha sido levada ao hospital.
Escondido, foi até a casa dela com um ramo de flores e entre elas camuflado, um amoroso bilhete de melhoras. A mãe dela recebeu o presente sem entender e sem descobrir o bilhete. Mas respondeu suas perguntas dizendo que a filha tinha um problema de tiróide que a fazia engordar daquele jeito, mas nada tão grave que não pudesse sair logo do hospital.
Manuel voltou ao balcão do mercado e ninguém notou a alegria borboleteando em seus olhos.
Borboletas que saíram voando deles e foram pousar no colo moreno de Jacira, quando ela entrou no mercado dois dias depois. Ela devolveu-lhe o bilhete dizendo: “Obrigada também pelas flores. Mas não faça mais.” E saiu. As borboletas da alegria de Manuel voltaram aninhar-se em seu coração. À espera de música e bons ventos.
Aos 52 anos, Manuel ouviu a conversa repleta de sarcasmo de duas freguesas, e soube que Jacira, desconsolada pela cegueira que acometera sua cachorrinha, estava desesperada procurando ajuda; na mesma hora Manuel largou a caixa do mercado, foi até a casa dela, ofereceu-se para levá-la ao veterinário no seu carro; pagou as despesas e no caminho de volta, pediu-a em casamento. “Não posso aceitar, você é casado. Não faça isso”, observou ela, aborrecida. “Se você aceitar, largo tudo”, jurou ele.
Ao estacionar na porta do mercado, ainda acompanhado de Jacira, a esposa e os filhos, furibundos pelo sumiço, o abandono da caixa e a demora em aparecer, o humilharam aos gritos na frente dela, dos fregueses e empregados.
Cheio de vergonha – nem olhava para Jacira que a tudo ouvia –, tentou explicar à esposa e aos filhos que “A cachorrinha dela...”
“A cachorra é essa índia gorda, seu estúpido”, gritou a esposa, provocando, com seu ódio, risadas dos filhos, fregueses e empregados.
Manuel apertou os olhos tão forte que chorou, e através das lágrimas viu as de Jacira, antes de ela sair do carro em disparada.
No domingo que se seguiu, depois de fechar o mercado à boca da noite, Manuel foi para casa e na mesa da cozinha, sozinho, preparou e comeu um sanduíche; pouco antes da meia-noite, enquanto todos dormiam, ascendeu uma vela para Santo Antônio, e deixou-a acessa no interior da despensa; depois abriu as seis bocas do fogão e foi ao aniversário de seu compadre, do lado sul da cidade, onde pediu desculpas por chegar tarde e pela ausência dos filhos e da esposa, que não estaria passando muito bem.
Os bombeiros encontraram os corpos carbonizados da esposa e de um dos filhos. Enquanto aguardava o DNA oficializar sua viuvez, Manuel mandou o outro filho morar em Portugal, e no santuário de Fátima se ajoelhar e agradecer por ter escapado à explosão, envolvido que estava, naquela hora, numa festiva putaria no lado leste da cidade.
Quando viu Jacira entrar no mercado quinze dias depois, as borboletas do coração de Manuel pairaram sobre sua careca e, conforme a música que a expressão dela provocava, alegretes começaram a dançar.