A Hora do Infelizes
Duas horas da madrugada. "Hora dos infelizes", pensou Lúcia.
O relógio digital no criado mudo, o abajur com sua luz tímida, a cortina dançando ao toque do vento que, sutilmente, escapa por entre o espaço da janela. César, de pijama de malha, estampado de figuras geométricas, dormia como quem não tivesse que viver no dia seguinte. Lúcia transpirava. Sua testa coroada de suor, inquieta, olhava o relógio. Duas horas da madrugada.
Lúcia se levantou, sua testa molhada de suor, sua lingerie de cetim branca, sua vida sem graça. Abriu a geladeira, pegou a garrafa de suco bebeu. Bebeu na garrafa. Um filete de suco desceu seu pescoço abaixo, como uma invasão. O suco frio foi invadindo seu colo, seus seios. Frio. Um arrepio frio, de vergonha, a tomou de assalto. Fechou a geladeira. Sentou à mesa. Não ligou a luz. Limpou a boca com a mão, como uma criança. Se debruçou sobre a mesa e riu.
César se virou na cama. Acordou e viu que Lúcia não estava. Sentiu-se bem. Abriu os olhos com força e viu as horas. Duas e dez da madrugada. Pensou em chamar Lúcia, mas desistiu, como sempre. Fechou os olhos. tentou voltar a dormir. O balançar da cortina o incomodou, repentinamente, de forma absoluta. Aquele bailar o exasperava. Abriu os olhos, olhou firmemente e quis sumir, evaporar, mas não era a solução. Levantou-se e foi fechar a janela. Ao segurar a trinco, viu um casal de beijando na calçada, encostados no muro. Se beijando como se fossem os únicos a poderem fazer isto na vida. César via aquilo, mas não conseguia se mover e nem esboçar qualquer reação. Apenas olhava com desepero e distância. Era inútil qualquer reação. Eles continuariam se beijando e ele voltaria para cama com seu pijama de figuras geométricas. Apenas com o pijama de figuras geométricas.
Lúcia, ainda debruçada sobre a mesa, olhava a cesta em forma de galinha onde ela colocava os ovos que comprava no mercado. Olhava com uma curiosidade renovada, parecendo ser aquela cesta algo novo em sua cozinha. Mas não era. Nada em sua cozinha era novo. Nada era novo em lugar algum. Levantou-se, pegou a cesta, colocou sobre a mesa e sentou-se novamente. Pôs-se a olhá-la com devoção. Pegou um ovo e passou a admirá-lo. Era como se nunca tivesse visto um ovo na vida. Sua cor amarelada, sua fragilidade, sua falta de função naquela cesta despertou em Lúcia uma angústia, uma vergonha por nunca ter percebido aquela cesta, aqueles ovos, aquela cena que se repetia sempre, de forma automática: comprar os ovos e colocá-los na cesta para serem consumidos na hora certa. Na hora que ela julgava ser a hora certa.
César ainda estático na janela, observava o casal. Era um beijo que nunca tinha visto, um beijo vestido de desejo, de pele, de calor. Fechou a janela e abaixou a cabeça, decepcionado com sua falta de postura, falta devergonha em ficar em pé, frente à uma janela, para observar um casal, em plena madrugada, se beijando. Puxou a cortina, tapando toda e qualquer possibilidade de visão exterior e foi ao banheiro. Acendeu a luz, apoiou-se na pia e não foi capaz de levantar a cabeça para se olhar, com franqueza, depois da insanidade que cometera. Abriu a torneira e ficou brincando com a água. Ela poderia obedecer sua vontade. Ou submissão.
Como toda cozinha, aquela era fria, absolutamente fria. Os ovos, bem colocados na cesta, estaria ali até a hora em que fossem usados em um omelete, receita de bolo, de um pão. Seriam eles servos suicidas de Lúcia. Lentamente, ela observava, em sua mão, o ovo. " Ovo de colombo...". Apertou-o em sua mão, quebrando sua fina casca. Apertou tanto, usou toda a força que poderia para ter a certeza de que quem mandava ali, naquele momento, era ela. Sua sensível pele da palma da mão ficou vermelha, de esforço. O clara escorria pelo seu antebraço, exalando um cheiro forte, um cheiro ofensivo, nauseante. Sua pálpebras se recusavam a fechar, queria ver toda aquela cena, todo aquele domínio. Demonstração de falso domínio. A cesta-galinha o mirava, friamente, da mesa. Lúcia se sentiu velha, tola, idiota. Suas pálpebras se fecharam. Seu braço desmaiou na mesa. Alguma coisa chorou em seu olhar.
Seu dedo indicador brincava com a água que jorrava da torneira cromada. Passava o dedo por ela, como se, por algum momento, tivesse tido a oportunidade de mandar, fazer, criar... César sabia de tudo. Sempre soube e nunca foi capaz de combater sua fragilidade, covardia, sua incopetência em ser um homem pleno. Fechou a porta do banheiro. Fechou a torneira. Cabeça ainda pesando para baixo. Sentou-se no canto do box, abraçou os joelhos. Apertou sua cabeça contra a perna e sufucou o grito, grito de pavor e medo.Sufocou a ponto de se sentir sem ar, sem respiração. Sem vida.Levantou os olhos para o teto e, num descuido, olhou para o box e se viu no reflexo do vidro espelhado. Não adianta. Sempre haverá uma espelho para nos mostrar quem somos. Olhava para aquele rosto com cuidado. Não conhecia nada daquele olhar, daquela face sufocada pelo seus joelhos.
O relógio despertou às seis da manhã. Lúcia, sobressaltada, acordou, com uma dor do braço, sobre a mesa. A clara do ovo, seca em sua mão, dava-lhe uma impressão de suja e podre. A cesta-galinha ainda a olhava. Virou-a para outro lado, levantou-se e foi para o quarto. Viu que César já não estava mais na cama. Bateu na porta do banheiro, pedido a ele que fosse rápido.
Com o coração na garganta, César se levantou do canto do box, com o rosto ainda sufocado, os olhos duros de desencanto. Ligou o chuveiro, tirou seu pijama de figuras geométricas e recebeu aquela ducha com alegria, com redenção. Tentou sorrir. Mas não conseguiu. Lembrou-se do casal. Silêncio.
Lúcia, escolhendo a roupa para o trabalho, incomodada com o cheiro que não saía de seu braço, tentava se esconder de si mesma. Mas não era boa nisso.
César saiu do banheiro, enrolado na toalha. Lúcia e ele se olharam. Disseram bom dia um para o outro e continuaram suas vidas.
A cesta-galinha ainda olhava para o nada e o casal já tinha se recolhido em outro lugar, para viver.