A Morte das Cegonhas - (A Vizinha)
Helena Couto de Magalhães, ruiva, 40anos. Faltavam-lhe dois dentes, mas como não exibia seu sorriso, o belíssimo corpo era o que bastava para que a admirassem. Tinha os olhos caídos e tristonhos, que todas as sextas-feiras, eram encobertos por óculos escuros. Os lábios eram mordidos por segurar a raiva que sentia quando a mão pesada do homem lhe alcançava a face.
Em um dia cruel, em que o firmamento já não segurava à força que tinha de espraguejar as águas que mereciam cair, Helena resolveu visitar a vizinha do prédio em frente. A vizinha que ouvia os gritos de dor vindos do apartamento de Helena e que não perdia uma quinta-feira para usar seu binóculo e desfilar nua em seu apartamento de onde observava com todo seu furor os movimentos Heleninha.
Recolheu as cortinas, tomou as chaves e seguiu passo até a porta. Ouviu relampear. Retornou. Achou melhor pegar um guarda-chuva. Foi para o quarto vasculhar seu guarda-roupa. Mais trovoadas. Pensou consigo: “Algo não está bem lá fora”. Desistiu do guarda-chuva. Apanhou uma capa protetora que pudesse lhe cobrir até o prédio em frente. Abandonou a peça. Arriou as cortinas e surpreendeu-se com o tanto de água que rapidamente iam tomando conta da cidade. Mesmo assim não desistiu. Estava disposta a encontrar com a vizinha. Talvez este fosse o momento. O marido não estava em casa e o nada ia preenchendo a solidão daquele apartamento.
Novamente recolheu as cortinas e cambaleou até a porta. Um clarão veio de fora. E as luzes se apagam. Correu para o telefone, mas estava mudo. O desespero estava marcando presença. Precisava de companhia. Ouviu gritos vindos de fora. Foi até a janela. Mais uma vez arriou as cortinas. O pátio do condomínio tinha mais água do que o lago que do parque. E olha que aquele lago é profundo. Mais adiante, próximo ao portão de entrada, alguns moradores tentavam chegar até seus recintos. Mas a raiva de Deus era tão forte que nem arriscavam entrar em suas casas e levarem algumas descargas elétricas.
Helena fechou as cortinas. Seguiu até a porta e saiu. Ficou parada em frente ao elevador que não chegava. Desistiu. Desceu cada um dos cinco andares e, finalmente, avistou a porta de saída do prédio. Com a mão na maçaneta, ouve um grito. Uma voz firme e grossa dizia para que tirasse imediatamente a maldita mão daquela porta. Helena não dá importância e age como seu instinto manda. Tenta diversas vezes abrir a porta que parece emperrada. Mais uma vez ouve aquela voz, familiar aos seus ouvidos. Força a abertura. A voz está mais próxima. Os passos parecem nítidos. A porta se abre. E antes que pudesse ver quem a gritava com tanta insistência, seus joelhos já sentiam a fria e molhada sensação de posse da chuva. Segurou com firmeza a maçaneta até que o volume daquele choro amenizasse. Forçou o caminhar, mas o homem segurou-lhe o braço.
Helena sentia a dor das quartas-feiras, em plena véspera de sábado. O olhar avistava, por uma pequena janela, o prédio em frente. Uma gota d’água atinge seu olho esquerdo. E com a lágrima do direito, completavam o choro que logo viria.