MATUTANDO AS MAZELAS

MATUTANDO AS MAZELAS

- Bom dia, Dr. Ângelo! Digo, boa tarde! Pensei que o senhor não viesse mais! Ainda bem que chegou! O Dr. Murilo já ligou pra cá três vezes – Disse a Secretária entregando a ele um pedaço de papel onde estava escrito o número do telefone do local onde o outro poderia ser encontrado.

- Faça a ligação você mesma e passe para a minha sala, deve ser mais uma das armações do Murilo.

Ângelo era um Advogado muito jovem. Embora só tivesse cerca de oito anos de registro, já era sócio de um escritório com vasta carteira de clientes e Já era bem conhecido. Algumas causas importantes foram suficientes para ser considerado um dos melhores Advogados da região.

Entrou na sala e logo a Secretária trouxe uma xícara de café que ele tomou olhando, através da janela, o movimento frenético das pessoas nas ruas de São Paulo. E ficou pensando na falsidade que imperava na sociedade apodrecida.

- Vou ligar agora pro Dr. Murilo, pode ser?

- Pode ligar. Você está muito bonita hoje, Alice! Melhor, mais bonita! Algum motivo especial?

- Não, nenhum, acho que são os seus olhos. – saiu da sala rindo.

Não demorou cinco minutos o telefone tocou. Era a Alice.

- Dr. Ângelo, Dr. Murilo na linha.

- Como é que vai grande Advogado? – Disse o Murilo - O Alfredo está aqui comigo. Está chamando a gente pra uma festa lá na fazenda dele pra comemorar a vitória. Disse que faz questão que você vá, vai ter muita mulher...

- Murilo, poupe seu tempo. Se você quiser ir vai, mas eu estou fora. Não vou me meter com esse tipo de gente. Não diga nada pra ele, mas eu não vou. Invente uma desculpa qualquer pra eu não ir. A propósito, eu vou sair de São Paulo por uns tempos. Vou viajar e pensar na minha vida, se vou continuar advogando ou se largo tudo definitivamente. Não dá pra compactuar com esse tipo de coisa. Você fica responsável pelo escritório. Se quiser, convide alguém pra assumir o meu lugar. Qualquer coisa me mande um e-mail ou ligue pro meu celular. Até mais! Dá um beijo na Glorinha.

Ele desligou antes que o outro insistisse e ficasse dizendo que queria conversar. Chamou a Secretária.

- Alice, eu vou me ausentar por uns tempos. Se alguém me procurar passe para o Murilo ou pra quem ele indicar. Não sei quando eu volto, na verdade nem sei se volto. Estou desiludido, não foi pra isso que eu estudei.

- Mas Dr. Ângelo, o que é que aconteceu meu Deus?

- Outra coisa Alice, não me chame de doutor, pelo menos quando estivermos sozinhos, você trabalha aqui comigo desde o início e...

- Tá bom, Ângelo! Você está dizendo que não sabe se volta. Deve ser um problema muito sério pra abandonar uma carreira promissora como a sua...

- Sabe Alice, apesar do meu sucesso, eu sou um cara simples, e certas coisas eu não admito e com elas eu não compactuo. Você soube do desfecho do caso que foi a julgamento ontem? Daquela modelo que foi assassinada pelo namorado? Você sabe que o nosso escritório foi contratado para defender o cara, não sabe? Pois é, você não sabe os detalhes porque a gente não deve ficar comentando essas coisas na frente de quem não está envolvido, até por conta de não ficarem se espalhando fragmentos importantes que podem ser de muito valor no Tribunal, por isso, sigilosos. O fato é que ele foi absolvido, mas matou realmente a garota e eu tenho nojo até de olhar pra cara dele.

Ele vive à custa do pai, que é um executivo muito rico e poderoso. É um playboyzinho descarado, metido a machão. Ele tinha ciúme doentio, ela era muito bonita, extrovertida. Ele já a tinha agredido algumas vezes, até em público, eu soube, em boates por achar que ela olhou pra outro cara. Ele mesmo me confessou que uma vez deu uns tapas nela porque ela tirou umas fotos ousadas para um site de modelos, que acabaram vazando para a internet. Outra vez, porque num desfile de modas a alça dum vestido muito fino deslizou pelo ombro e ela ficou com um dos seios de fora momentaneamente e, logicamente foi um prato cheio para os paparazzi. Ele achou que foi jogada dela pra aparecer na mídia. Nesse dia ela teve que ser atendida num hospital, mas preferiu não registrar ocorrência contra ele. Eu não sei o que ela viu naquele sujeito pra gostar tanto dele a ponto de apanhar e ser humilhada. Eu não entendo certas mulheres! Pior que jovem e linda, com uma carreira muito promissora.

No dia em que ela foi encontrada morta num quarto de motel, estrangulada, ele tinha ido pegá-la na agência e a viu conversando com o dono da agência. Ficou muito enciumado e por mais que ela tentasse explicar que eles estavam tratando dos preparativos para uma viagem a Nova York, para fazer um desfile, seu primeiro internacional, ele não conseguiu se controlar e começou a gritar com ela, chamou-a de prostituta, vadia e usou outros palavrões para desqualificá-la. Isso tudo na presença de uma colega dela que fez questão de me relatar o fato, uma vez que eu estive lá na agência para colher algumas informações. As agressões verbais eram rotina, ela me disse.

O pai dele fez tudo para que o filho não fosse levado a júri popular. Impetrou várias vezes “habeas corpus” para que ele não fosse preso. Comprou testemunhas para deporem a favor dele e outras para desqualificar a pobre coitada, que passou de modelo a garota de programas. Subornou policiais, delegados e até juízes, eu acho. Conclusão, ele foi absolvido e o caso encerrado porque não conseguiram provas conclusivas que o incriminassem, mas também não procuraram outro suspeito. Os amigos dele afirmaram que na noite do crime ele foi com eles para uma boate depois de deixá-la em casa. No motel, não tem registro de quem utilizou a suíte onde ela foi encontrada e os funcionários disseram que não viram ninguém sair sozinho do lugar. Conclusão, nós não precisamos fazer quase nada, tudo foi arranjado. É por isso que eu estou jogando minha toalha, vou e não sei se volto. Estou desiludido e envergonhado.

Foi um prazer trabalhar com você, boa sorte! Talvez a gente ainda se veja algum dia, eu vou dar tempo ao tempo pra ver como as coisas vão se comportar.

Deu um abraço na Alice e saiu.

Mas você vai embora mesmo? Não vai voltar mais? – Ela estava chorando.

Ele a abraçou e ficou com pena dela, teve certeza do que já desconfiava. Ela gostava dele. Por isso de vez em quando ela ficava emburrada e as ligações caiam quando alguma amiga ligava pra ele. Ela era uma mulher bonita, inteligente, até que poderia dar certo. Mas não era disso que estava precisando no momento.

Encontrou um lugar maravilhoso em Aiuruoca, nas Serras Mineiras, para viver isolado, longe da sociedade permissiva, desonesta e desumana. Vivendo no alto da montanha, numa casinha simples, bem junto a uma cachoeira, onde se viu renascer e viver um sentimento amplo de liberdade. Passou algum tempo vivendo do artesanato que ele aprendeu a fazer quando era adolescente. O que ele produzia, ia vender em São Lourenço. Passado algum tempo ele resolveu procurar a família da modelo assassinada. Talvez sempre tenha sido o seu propósito. Ele sabia que eles moravam numa cidadezinha próxima e queria dizer aos pais dela tudo o que ele sentia a respeito daquele tipo de gente que acabou com a vida da jovem filha deles, que apesar de ter participado como Advogado, não tinha como interferir e que realmente ninguém apresentou provas contra o assassino. Dizer que ele tinha abandonado a carreira por causa do que aconteceu com a filha deles, por se sentir impotente e até incompetente, desiludido com a humanidade inconfiável.

Quem veio atendê-lo quando chamou ao portão do pequeno sítio onde eles moravam, foi uma jovem que era muito parecida com a modelo. Entendeu que era irmã dela, os pais não estavam e ele foi embora prometendo voltar outra hora. Não esqueceu mais da garota, estava ansioso pra voltar, o que fez dois dias depois. Apresentou-se aos pais dela e falou tudo o que queria. O julgamento das pessoas simples é muito diferente daquelas que se acham superiores. Eles entenderam, até porque já tinham aceitado o fato de terem perdido a filha. A mãe, chorosa, disse, inclusive, que ela achava que tinha perdido a filha quando ela saiu de casa para aquela vida de modelo. A irmã, tão bonita quanto ela, isso ele já tinha percebido, não iria de jeito algum.

Quando ele deixou a casa deles, o enredo de amor com a garota, que se chamava Adriana, já estava a meio passo e não tardou a se concretizar por força da ansiedade dele que retornou no dia seguinte com um presentinho feito por ele.

O namoro ia pelo segundo mês, ambos transbordando de felicidade. Ângelo já era outro homem e vivia feliz na sua nova vida, quando o trágico destino, pelo mesmo motivo torpe, levou também sua amada, seqüestrada, violentada e assassinada pelo ex-namorado que não admitiu ser substituído no coração da moça, embora ela e os pais dela tenham dito que eles já não estavam namorando há algum tempo, mas que ele, também muito ciumento, não aceitava e vivia na expectativa de ser aceito de volta.

Ele, então, cego de ódio e desencantado com a Justiça, saiu em perseguição ao assassino da sua namorada e quando o encontrou, surrou-o violentamente, bateu sem parar e descontroladamente. Só lhe vinha à mente, enquanto batia, a imagem da sua amada do jeito que a viu morta. O homem não resistiu aos ferimentos provocados pelo espancamento e morreu.

Agora era ele quem estava fugindo, porque não achava justo que fosse condenado por matar o cruel assassino da mulher que amava, tirando-lhe, também, novamente o prazer de viver. Voltou para São Paulo, foi ao escritório pegar dinheiro com o Murilo, disse que estava precisando para fazer uma viagem, mas não disse o que aconteceu. Foi viver em Machu Picchu, nos Andes peruanos.