O Presente Inconveniente
Na quinta-feira, pela manhã, Cândida arrumava a casa. Mulher esbelta de 42 anos e sempre incansável, guerreira, casada há 12 anos, três filhos. Feliz por ter uma vida tranqüila, filhos passando férias na casa dos avós maternos, num delicioso sítio.
Precisava lavar a roupa e cuidar do almoço, simples e temperado ao gosto do marido.
Rui, marido de Cândida, era um homem de 43 anos, alto, forte e trabalhador. Honesto, fiel. Há pouco tempo arrumou serviço de gari cuja rotina o tornava mais forte.
Cândida estendia a roupa ouvindo e cantando uma antiga música que tocava no radinho de pilha:
Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade eu peço paz.
Ao terminar de estender as roupas no varal, foi cuidar da comida e aguardar a chegada do marido, como uma boa esposa acostumada a esperar, sem queixas. Afinal era o homem que ela escolheu, seu companheiro para toda a vida.
- Estou de volta, amorzinho!
- Meu amor! Está com fome?
- Opa! Primeiro um banho!
- Vai sim tomar seu banho.
Após o banho, primeiro os abraços, os beijos, os cheiros. O estômago agüentaria mais um pouco.
Ambos sentados à mesa saboreavam um almoço simples, mas agradável ao paladar. Enquanto comiam, falavam da saudade das crianças, mas falavam também do sossego que ficava a casa e de poderem ficar mais à vontade.
Tão tranqüila a vida deles que não tinham muita ambição. Sonhavam, apenas, em trocar a mobília que os faziam sentir vergonha quando recebiam alguma visita.
Cândida sugeriu ao marido que ela poderia ajudá-lo fazendo serviços domésticos em algum lugar. Rui, por sua vez, pensou que poderia ser uma boa idéia. Não iria contrariar a esposa. Porém, achou que, após trocarem os móveis da casa, ela poderia continuar a trabalhar fora se quisesse.
Por mais tempo conversaram durante o almoço até a hora de Rui ter que voltar ao trabalho. Ele se despediu e foi trabalhar.
Sozinha, Cândida sentou-se no sofá e se deixou levar pelas lembranças que a levaram àquela vida a dois. Lembrava de quando conheceu seu marido.
Rui era um rapaz não muito bonito, mas possuía um jeito de olhar que a fez se encantar por ele. Moravam na mesma rua. Eram vizinhos que mal se falavam. Cândida tinha um namorado, e ele era apenas um vizinho interessante, meio tímido. Não trocavam palavras, mas ela reparava nele com inocente admiração. Nada mais.
Levou um tempo até começarem a trocar idéias, CDs, revistas até trocarem olhares mais intensos, suspiros e beijos. Assim, Cândida terminou o seu namoro com o outro rapaz. Então, ela e Rui começaram a namorar e um dia se casaram.
Ela se lembrava de tudo isso. Em cada lembrança um suspiro.
Por volta das três horas da tarde, O carteiro entregou a ela um embrulho. Curiosa ela o abriu. Veio com um papel de presente enviado por um Paul Jackson, um vestido azul que era o seu número. “Paul Jackson?” pensou ela. “Mas isso faz tanto tempo!”
Paul Jackson tinha sido namorado dela, há muito tempo atrás. Um norte-americano com bom vocabulário em português que ela havia conhecido através de uma amiga. Ele na época estava apenas de passagem. No entanto, ambos tiveram uma relação de uns dois meses e muito intensa. Algo que passou. Depois ele teve que voltar aos Estados Unidos.
O que aquela mulher, já casada e feliz, não entendia era porque recebia após muitos anos um presente como aquele. Não havia nada escrito. Apenas o nome de quem o enviara.
A chegada de Rui fez Cândida estremecer. O que ela diria ao marido? Será que ele entenderia? Ela tinha que dizer a verdade, não poderia esconder o presente. Mesmo que não tivesse culpa alguma, seria difícil dar uma explicação ao esposo.
- Olá, querida! Quais são as novas?
- Bem...
- Que vestido é esse? Foi comprado?
- Não. Eu ganhei.
- Quem lhe deu?
- É... Foi um ex-namorado...
- Ah? Ex-namorado? Que significa isso?
- Querido entenda...
- Cândida, com quem você anda se encontrando quando estou fora?
- Não pense uma coisa dessas de mim! Você sabe que eu nunca o traí! Nem em pensamento!
- Não? E esse vestido aqui? Hein? Nenhum ex-namorado daria um presente!
- Eu não sei por que ele me mandou esse presente! Juro!
- Paul Jackson? Então esse é o nome do seu amante?
- Eu não tenho amante! Ai! O que faço pra você acreditar em mim?
Rui ficou no jardim, cheio de ódio de sua esposa. Ela se sentou no sofá e chorou bastante. Por que aquele presente havia sido enviado? Que intenção teria Paul Jacson?
Uma providência teria que ser tomada, um casamento entre duas pessoas que se amam não poderia acabar dessa forma.
Naquele momento o que importava era fazer com que tudo voltasse à paz de antes. Se havia alguma má intenção no presente dado por um ex-namorado de há muito tempo atrás não fazia diferença. E mesmo porque, ela havia perdido o contato com ele. Não tinha mais nem endereço nem número de telefone. No presente apenas um nome. Mas, por que sem endereço do remetente?
Quando o Sol se pôs, Rui resolveu entrar, sem dizer uma palavra à esposa e se dirigiu à cozinha. Cândida, ainda chorosa, ficou calada e pensativa. No chão ainda o vestido. Ela pegou o pacote, olhou atentamente e viu um envelope que estava colado por dentro. Poderia estar ali o mistério daquele presente que veio tão fora de hora e tão sem motivo. Ela o abriu.
“Querida Cândida, como está?
Lembra de um passeio que fizemos e ao passar por uma loja de roupas você ficou parada olhando para um vestido azul? Você me disse que queria ter um vestido azul. Naquele momento eu fiquei quieto, mas pensei que um dia lhe daria um vestido parecido.
Hoje sou um homem casado, não tenho filhos. Estou muito bem no meu casamento, mas sinto um carinho especial por você. Carinho de amigo, ok? Acredite. Penso que você também esteja casada e imagino que esse vestido pode causar um desentendimento. Se estiver casada, minha querida amiga Cândida, mostre sem receio esta carta ao seu esposo, sem receio. Creio que ele vai entender.
A vida tem boas surpresas. Passei por alguns momentos de tristeza devido à perda de pessoas importantes. Num dia de muita angústia, conheci uma pessoa especial que é minha companheira. Com ela voltei a sentir amor pela vida.
A lembrança que tenho de você é doce. Eu tenho certeza que seu companheiro é muito feliz ao teu lado.
Enfim, não lhe deixarei meu endereço, mas deixarei pra você esse vestido como recordação e todo meu carinho.”
Com carinho de amigo,
Paul Jackson
“Mostrarei ao meu marido esta carta e ele vai me compreender. Meu amor por ele é imenso, e não quero sofrer tanto assim.” - pensou Cândida.
Dirigindo-se à cozinha, ela se aproximou do marido que se encontrava sentado em um banquinho. Calado. Olhos baixos olhando para coisa alguma, parecia não notar a presença da esposa.
- Rui.
- (...)
- Olha. Havia uma carta junto com o pacote do presente. –disse Cândida com voz trêmula. Leia.
Esforçando-se para não pegar a carta, mesmo assim, Rui a recebeu contrariado. Leu-a em silêncio.
O silêncio do marido. Aquilo causava em Cândida uma aflição como em qualquer ser humano. Às vezes o silêncio é alívio; outras, um grande mal-estar.
- Rui... O que você me diz sobre isso?
- Não quero saber de nada. Vou sair. Vou... Sei lá!
- Oh! Rui!
- Não me espere para o jantar.
“Não me espere para o jantar.” Aquelas palavras deixaram Cândida sem ação. Nunca tinha sentido algo assim. Sempre foi uma mulher de ação. Realmente aquilo que ouviu do esposo a deixou bastante mal, sem saber o que fazer.
De repente, como se tivesse voltado ao mundo real, Ela correu em direção à sala. Rui estava abrindo a porta para sair. Ela, então, deu um grito:
- Rui! Espera!
- Ele se virou para ela impaciente.
- Tá vendo esse vestido? Tá vendo, Rui! – disse em voz alta e com lágrimas nos olhos.
Com raiva, ela rasgou o vestido azul. Deixando-o em pedaços. Rasgou-o com as próprias mãos, sem nenhum outro instrumento. Tratava-se de um tecido forte, mas o desespero a tornou ainda mais forte.
O marido ficou olhando aquele gesto dela, perplexo, sem dizer coisa alguma.
Já eram por volta das oito da noite, Rui resolveu ficar em casa. Sentou-se sem dizer nada no sofá. Chorando, sua esposa foi para o quarto, como se tivesse aliviada após aquela atitude raivosa.
No quarto, ela ficou sentada na cama pensativa, passando a mão sobre o lençol amarelo, estampado com folhas verdes. Naquele mesmo instante, o seu marido ficou ajoelhado diante dela.
- Candinha... Eu sei que agi mal não acreditando em você. Fui muito estúpido. Me perdoa, meu amor!
- Sim. Melhor esquecer tudo isso. Mas tem um problema.
- Qual?
- O que fazer com aqueles pedaços de pano?
- Ah! Use-o para limpar os móveis ou pra qualquer outra coisa. Ou jogue no lixo.
- Quer saber? Eu sou louca por você! Piradinha!
- Mais do que eu por você? Duvido!
Ali mesmo eles se amaram fervorosamente. Nada, ninguém conseguiria separá-los da vida maravilhosa em que viviam. Naquela cama comprovaram o grande amor de um pelo outro. Não estavam num castelo de contos de vida nem em outro lugar fabuloso. Aquela realidade modesta era o paraíso deles.