O ANTÍDOTO
 
Uma mulher que trabalha na área de prevenção e controle de doenças do Ministério da Saúde me contou essa história. Ela conta que astava no aeroporto de Palmas quando encontrou um colega dela, sanitarista, que trabalha na Secretaria de Estado da Agricultura de Tocantins. Depois de cordiais cumprimentos e conversas amenas, ele contou que estava esperando um defunto no avião que chegaria de Gururpi, por àquelas horas. E começou a contar os detalhes da história que estava acontecendo num povoado daquele município, região do sul de Tocantins.
 
Contava o colega que, desde algumas semanas atrás, em tal povoado, vinha acontecendo um fato, no mínimo curioso que, para registro e memória, não poderia deixar de escrever.
 
Ele dizia que, como técnico acompanhara os procedimentos de coleta de dados na localidade do incidente, cujos trabalhadores de saúde do município  vivenciaram tal fato que, por longos anos, terão o que contar aos seus filhos e netos.
 
Eis que o proprietário de um alambique, que também era o vereador representante daquela localidade rural, vendo-se avexado pela falta de sua cachaça no mercado, resolveu bolar uma situação para “render mais” o seu produto. Ao conversar com um sócio, na busca da solução para a crise de abastecimento da preciosa aguardente, teve a “iluminada” idéia de propor que a solução pra essa escassez seria a compra e utilização do álcool que é vendido nos postos de combustível, o metanol. E assim procedeu, misturando na composição de sua aguardente o metanol.
 
É de bom alvitre informar a diferença na composição química dessas substâncias: o etanol, álcool da cachaça e de todas as bebidas alcoólicas, tem a seguinte estrutura: C2H5OH; o metanol, o álcool combustível, por outro lado, apresenta-se com a seguinte composição: CH3OH.
 
A ingestão do álcool etílico, o da cachaça, tecnicamente conhecido por etanol, provoca os sintomas que já conhecemos, desde a sensação de calor e rubor facial, passando pela fala arrastada e visão dupla, até a diminuição dos reflexos e sonolência. Por outro lado, a ingestão do álcool metílico, o combustível, tecnicamente conhecido por metanol, tem rapidamente a sua absorção pelo trato gastrointestinal, podendo levar ao aparecimento dos efeitos muito graves da intoxicação, como lesões no nervo óptico, com o embaçamento da visão, dores nos olhos, podendo chegar à cegueira. Uma dose de apenas de 30 a 100 ml pode ser fatal para o homem. Os sintomas, que se apresentam como distúrbios são os seguintes: distúrbios digestivos como náuseas, vômitos, diarréia e dor abdominal; distúrbios neuropsíquicos, como dor de cabeça, vertigens, embriaguez, astenia, sonolência, coma, dilatação das pupilas, diminuição da acuidade visual e cegueira, devido à degeneração das terminações da retina e do nervo óptico e hemorragia cerebral, lesões do cérebro e cerebelo; e distúrbios hemodinâmicos, como hipotensão e insuficiência cardíaca.
 
A morte pode ocorrer em conseqüência de insuficiência respiratória ou cardíaca, certamente proveniente da bio transformação do metanol, formando-se os metabólitos ácidos fórmicos e formaldeídos, através da desidrogenase, ação enzimática do álcool. Afora esses termos técnicos, que para nosso relato, mais pelos efeitos práticos, muito representa pela curiosidade em sabê-los.
 
Não obstante buscarem-se os efeitos daquela famigerada mistura realizada por algum irresponsável, pra aliviar no criminoso (E olha que ele era vereador!!!), não tardaram a chegar as histórias de que o seu fulano ou beltrano estavam adoecidos, sem saber de que causa. Sem demora, a notícia corria de que noutro povoado, também convalesciam outras pessoas, quase sempre homens. No pequeno posto de saúde da localidade começaram a acorrer dezenas de pessoas que se apresentavam com aqueles estranhos sintomas. E, para maior espanto daquela pacata população, começaram a aparecer os primeiros óbitos. E então as conversas nas quitandas e botequins surgiam acerca da morte de pessoas conhecidas da cidade. Primeiro morreu o seu João, o entregador de leite; depois o seu José, que era o capataz e também fazia as ferraduras das burras da fazenda do seu Jeremias; em seguida soube-se da notícia da morte do seu Antônio, que tinha acabado de roçar as terras do pastor Jesualdo, que morava em Aparecida de Goiás, onde era a sede da sua igreja, mas tinha uma missão evangélica na região; agora se soube da morte do seu Quincas, o mais conhecido cabo eleitoral da região, de cujo caixão estava sendo esperado pelo colega sanitarista, que acompanharia a necropsia no IML da capital. Tudo isso a mando do deputado, coronel que abocanhava os votos da região, amigo e protetor do falecido e que bancava as despesas do enterro, para fincar-lhe um demagógico discurso de despedida nas exéquias.
 
 Dá pra imaginar o pânico que gerou na cidade essas mortes sem causas definidas!
 
Ora, no interior do Brasil, sabem-se, as pessoas quando morrem há que se ter uma causa definida, pois que assim deve-se ouvir que “fulano” morreu de morte matada, ou de morte morrida, ou “sicrano” morreu de velho. O que não pode é ficar desse jeito, as pessoas morrendo, sem uma causa determinante que se enquadre no conhecimento do povo. A preocupação foi geral. Todas as autoridades médicas do Estado se mobilizaram, acionando até as autoridades federais. Daí que entra a mulher que me contou essa história e que foi convidada para essa inspeção. 
 
Com isso, sem delongas, começou-se uma luta incansável para determinar a causa dessas mortes. Os técnicos começaram a pesquisar sobre o “modus vivendi” das vítimas. Todas as vítimas, quando vivos, depois da lida diária na terra e antes de se dirigirem pra casa, como era de costume, tomavam um trago na quitanda do seu Serapião. Os técnicos descobriram também que em cada velório serviam-se do precioso aperitivo para, conforme o costume, “beber” o defunto – essa é uma expressão usual nos recantos interioranos e sertanejos desse imenso país, quando, no velório, não apenas se “bebe” o morto como se canta as modas de viola, em memória do pobre amigo que partiu pra uma melhor.
 
Esses mesmos que participavam do velório também começaram a morrer, e diziam-se, os já enfermos: - "deve ser o cumpade qui tá vindo buscar nóis tomém!”.
 
Depois de acurada pesquisa das causas, descobriram, por fim, tratar-se da perigosa mistura na cachaça, com alta concentração do metanol. De logo os médicos foram contatados para saber qual tratamento adequado ou antídoto dever-se-ia aplicar, para tentar salvar aqueles que estavam doentes ou moribundos.
 
E para surpresa de todos na cidade, o antídoto receitado pelo médico da cidade era o etanol, ou seja, a cachaça pura, podendo ser aplicada diretamente nas veias ou via oral. Como a cachaça estava escassa, motivo pelo qual o dono do alambique resolveu fazer a mistura, tinha-se que providenciar outra aguardente. Resolveu-se apelar para o prefeito que, de pronto, por certo com medo de perder eleitores, teve que ceder as garrafas de uísque que tinha em seu depósito. Desta feita, todas as unidades de saúde municipais, haveriam de aplicar o antídoto em todos os que se queixavam dos sintomas. Na rádio local, a convocação insistente soava aos quatro cantos: “- dirijam-se ao posto de saúde central, aqueles que apresentarem os sintomas tais e tais...., para fins de receberem o antídoto.” A notícia se espalhou por toda a região e imaginem o tamanho da fila que se fazia no posto de saúde. Conta-se que faziam voltas e voltas na quadra da praça central. Tinha até quem ficava na fila no lugar de outro, guardando a vaga, cobrando por isso dez reais.
 
Quando chegava a sua vez o paciente era surpreendido, sendo-lhe oferecida pela enfermeira uma apetitosa garrafa de uísque. “- má cuma é que pode dona dotôra? Tô duente e a sinhora inda mim dá bibida?” Reclamavam atônitos, os pacientes. E quando saíam do posto e voltavam pros seus povoados, felizes da vida, meio que cambaleando diziam: “- nunca vi remédio tão bom!”.
 
Deve-se explicar: A enzima desidrogenase alcoólica, que transforma o metanol (álcool combustível) em formaldeído, é a mesma que atua sobre o etanol (álcool das bebidas) transformando-o em acetaldeído. Esta enzima tem maior preferência pelo etanol. Assim, quando são administrados juntos, grande parte do metanol não é bio transformada em seus metabólitos tóxicos. É este o mecanismo de antídoto do etanol na intoxicação por metanol. É que o etanol, no corpo humano, oxida-se no lugar do metanol e o aldeído acético que se forma, em vez de causar cegueira ou outro mal, resulta apenas numa sonolenta ressaca. -Vá saber!!!
 
Descobriu-se, assim, o motivo pelo qual havia mais pacientes na fila para receber o antídoto do que os que foram realmente notificados pelos agentes comunitários de saúde. Não era pra menos. Desse jeito até eu!
 
E para finalizar, não poderia esquecer dois atores que participaram dessa história: o alambiqueiro, também vereador, foi indiciado, perdeu o mandato e foi preso incurso nas penas do artigo 272, parágrafo 2º do código penal, modalidade culposa (Êta legislação desse país!!). Depois de cumprir parte da pena, foi solto por bom comportamento e prestação de serviços no cárcere. Voltou à vida pública e conseguiu se reeleger vereador, alegando ter sofrido perseguição política da oposição (-Valha-me Deus, a que "nobres" edis entregamos o destino de nossas cidades!!!). O outro é seu Quincas, o cabo eleitoral morto. No aeroporto, o deputado e sua corriola esperavam solenemente a chegada do defunto. Quando todos chegaram ao IML verificaram que o corpo não estava no caixão. Disseram que foi pela grande demanda por serviços funerários na região, resultando na atrapalhada...
 
... - Mas essa é outra história!


                                                Brasília, 11.09.2008
Roberto Dourado
Enviado por Roberto Dourado em 11/09/2008
Reeditado em 23/11/2008
Código do texto: T1172757
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