UMA VEZ FLAMENGO...
Um conto para quem tem fé e acredita que o ser humano pode mudar
Naquele bairro popular, jeitinho carinhoso de se falar favela, nascia Titinho. Em pleno domingo de sol, as quinze e trinta horas de um verão escaldante, exatamente no meio de uma roda de samba ao som de Zeca Pagodinho e Bezerra da Silva.
O chá de bebê foi movimentado, por entre cachaça, cajuzinho, muita fralda caseira e lembrancinhas de R$ 1,99, destoou o presente do padrinho Medonho, o patrão do morro do barranco alto, uma camisa de bebê oficial do Flamengo, de nº 10, que já foi vestida por ninguém menos que o galinho, Zico.
Ao som de rajadas de metralhadora foi dada a palavra ao próprio Medonho, que assim falou. — Afilhado meu tem que ser macho, tem que ser malandro e tem que ser Flamengo. — Ocasionando o delírio dos presentes.
E a corja que compunha o cordão dos puxa-sacos, logo entoou o hino do clube, por mais que um ou outro fosse vascaíno. Vascão é vascão e patrão é patrão. — Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer! — E tome tiro de “metranca”.
Seu futuro foi muito comentado e também muito comemorado, pois pra beber qualquer malandro do morro arruma desculpa. E foi neste ambiente hostil que nasceu e cresceu, a mais bela fruta do pomar, cercado de muita caipirinha, pagode, cerveja e rabo de galo.
De futuro comentado porque a mãe não parava em casa, porque o emprego não deixava e o pai, braço direito de Medonho, foi morto na subida do morro quando a polícia veio dar batida. — Pegaram ele de laranja — dizia a vizinhança. — Foi bala perdida — certificava outro. Mas na verdade na verdade ninguém me tira da cabeça que foi o Ribamar. 3º sargento PM responsável pela coleta mensal. Naquela mesma semana numa discussão no bar, Tião arremessou o bolo de notas na cara de Ribamar. Na hora todos sacaram, todos se olharam, todos fumaram, todos se acalmaram e todos foram embora felizes e sorridentes, menos Ribamar que tinha na cachola uma frase feita a martelar “te pego malandro”, “te pego malandro”, e quando a viatura saiu, de sirene desligada para não chamar atenção, ele sentado na porta com o braço para fora batendo na lataria encarou e disse apontando para Tião que não acreditou — Te pego malandro. — e pegou.
Muito tempo se passou, o morro cresceu, muita gente mudou, muita gente morreu, mais Medonho que na época do nascimento de seu afilhado era apenas um jovem promissor, hoje era um senhor e continuava firme e forte no comando do tráfico, no morro do barranco alto.
Mas o que mais marcou na favela o ano de debutante do garoto Titinho, não foram às mortes e nem as prisões, não foi a alta do dólar e nem a crise do Mengão, foi na verdade a chegada de Elias.
Alugou um ponto, apenas uma porta de ferro de correr onde antes era o boteco do falecido Barba. Trabalhava dia e noite já a algumas semanas, junto com outros dois e o mistério se acercava deste tal fulano que ninguém sabe de onde vinha e muito menos o que queria, deixando com a pulga atrás da orelha Marcão Fuzileiro, comparsa de Medonho, marido-cafetão de Maria Madalena, prostituta mais bela e requisitada nas festas de bacana, hoje já com os seus trinta e uns, que nas horas vagas, era mãe de Titinho.
Benedito, o Titinho, agora era garoto crescido, já com seus 15 anos, na flor da idade como diziam, tinha hábitos duvidosos para um menino de sua idade. Não empinava pipa, não jogava futebol, nem fumar maconha o desgraçado queria. Ele gostava mesmo era de ler revista e desenhar. Lia Claudia, Contigo, TV Brasil, João Bidu, Tititi e adorava desenhar e cortar roupinhas para as bonecas de suas quase sempre meio irmãs. Hábitos estes que Maria não queria revelar, Marcão que substituiu Tião não queria acreditar e que Medonho, o patrão, Deus me livre, não podia nem imaginar.
Era um domingo, o galo insistia em anunciar a madrugada quando apareceram nos postes as chamadas. “Você está perdido? Venha se encontrar” ou assim: “A salvação é o caminho, venha para o exército de Deus”, ou ainda “Deixe sua vida de pecado para trás”, entre outras. O endereço era conhecido, antigo ponto de bicho, em frente a boca de fumo mais movimentada da cidade, em frente a pracinha que só circulavam os conhecidos ou PMs acompanhados do Tenente Riba, que vinha cobrar propina de 15 em 15 dias e tirar dinheiro de uns mauricinhos que apareciam na boca. Outros tempos.
Os cartazes foram a gota d’água para Marcão Fuzileiro, que junto com Medonho e o matador Cicatriz foram bater na porta de ferro do fulano pastor, antes mesmo que ela se abrisse pela 1ª vez.
O esquentado Cicatriz foi quem começou a, vamos dizer assim, conversa. – Escuta aqui amizade, pra entrar na nossa favela, só quem é da “família” tá sabendo! Abre esta merda que a Berdanete quer falar contigo! — Bernadete para quem não conhece era a 765 reluzente que Cicatriz, o capanga matador mais violento de Marcão e Medonho, trazia sempre na cintura.
— Güenta as ponta Cicatriz, quem manda sou eu, quem fala sou eu.— Falou Medonho tentando acalmar o capanga que já estava pronto para sacar Bernadete antes mesmo da porta subir.
A porta se abriu e dentro de um terno de linho azul claro quase branco, apareceu Elias Bartolomeu da Silva, conhecido como Elias de Deus, o pastor de homens, as ovelhas desgarradas do senhor. Descendo para a calçada, seguido de seu discípulo Divino, um ex-travesti do tapetão de Copacabana, Elias com a bíblia aberta na mão proferiu o que na sua concepção seriam as palavras da salvação.
— O que pode um servo de Deus fazer para ajudar nobres pessoas que estão com certeza a caminho do céu?
A resposta veio rápida, das profundezas da ignorância de Cicatriz.
— A caminho do céu? Eu te mato primeiro seu filho da p... Canta Bernadete!
Mas apesar do riso de Marcão, que achava graça em tudo, do desespero de Medonho, matar pastor na frente da boca de fumo da azar pros negócios, da raiva de Cicatriz que neste momento estava roxo com o dedo a pressionar o gatilho e do liquido amarelo que escorria pelas pernas do pastor Elias, já de joelhos e com as mãos entrelaçadas em posição de oração, lavando a bíblia aberta no apocalipse de João com urina, suor e lágrimas. A Bernadete não cantou.
Cicatriz apertou e ela não cantou. Elias orou, Bernadete calou. Medonho assustado exclamou: - Ela nunca falhou! Marcão se espantou e Divino, que já foi Divinéia Boca de Anjo, gritou — Aleluia!
E foi assim que Bernadete mesmo calada anunciou a glória divina do pastor Elias de Deus. Neste momento, na verdade depois do banho do pastor e de lavarem a calçada, estava fundada a Congregação Neo-Cristã do grito mudo de Bernadete Beata. Igreja Evangélica com sede própria doada pelo próprio Medonho em respeito a glória de Jesus Salvador e de seu pai Oxalá.
Entraram, sentaram e formularam os estatutos da nova igreja, com o auxilio especial de Marcão e Medonho, que passou a ser sócio fundador, mantenedor e patrão. — O segredo é diversificar — ele dizia.
E assim foram sendo descritos os novos mandamentos por Elias, seguidos dos adendos pouco ortodoxos, criados por de Marcão e Medonho. Sempre aceitos é claro.
— Não beberás! — falou Elias com voz de Moisés.
— A não ser em reuniões familiares. — Acrescentou Medonho.
— Justo. — Comentou o escrivão Divino olhando como se dissesse “se não quiser morrer é justo”. Mesmo pensando em possíveis problemas Elias arriscou mais uma vez com voz de Moisés.
— Não matarás!
— A não ser em defesa própria. — Acrescentou novamente Medonho.
— Ou em nome de Deus! — Gesticulou Marcão imitando a voz profética de Elias.
— Ou se estiver sob possessão demoníaca. — Lembrou Cicatriz empunhando e sacudindo Bernadete pelo ar.
— Justíssimo, anote isso também. — Falou rapidamente Elias apontando para o livro ata nas mãos de Divino enquanto deixava escapar uma pouco audível flatulência.
Lembrou-se de outro mandamento e tentou.
— Não darás falso testemunho!
— A não ser que seja sob a orientação de seu advogado. — Falou Marcão com ar de quem sabe do que esta falando.
— Isso é verdade. — Completou Medonho.
— Não cobiçaras a ...
— Não, não essa não. — Interrompeu Medonho antes que Elias pudesse completar a frase.
— Ninguém é de ferro. — Comentou Divino tentando ser gentil.
— Acho que já está bom dessa papagaiada toda.
— Olha o respeito com a palavra de Deus, Cicatriz. — Anunciou Marcão.
— Que palavra de Deus o que, vocês é que estão fazendo isso aí.
— Cicatriz, a voz do povo é a voz de Deus, esqueceu? — enfatizou Marcão Fuzileiro.
— Concordo com você Marcão e concordo com Cicatriz também — Falou Elias com um sorriso amarelo — mas ainda falta mencionar o dízimo.
— Deixe que as cobranças faço eu... e Bernadete — Anunciou Cicatriz dando tapinhas na Beata reluzente prostrada novamente na cintura.
Quando tudo parecia resolvido gritou Marcão Fuzileiro gesticulando com os braços.
— Mas ela não canta!
A ameaça de Cicatriz foi incisiva. — Quer ver ela cantar desgraçado.
— Aleluia! — Mais uma vez gritou o Divino salvador, auxiliar de pastor.
Estabelecidos os estatutos, faltava a placa que por falta de espaço e também para dar sorte, foi pintada no terreiro de Mãe Josefa, Tia de Medonho, na sexta-feira 13, festa do exu Zé Pilintra, que protegia Cicatriz e a malandragem do morro de uma forma geral. E a placa ficou assim:
CONGREGAÇÃO NEO-CRISTÃ (do grito mudo de Bernadete Beata)
Cultos aos domingos (depois do pagode)
Terça a quinta – estudos bíblicos
Sexta – desobssessão / Não esqueça de pagar o Dízimo
Sábado – Festa-culto com Mc Chapéu
A Igreja onde o EX tem vez
E no domingo (depois do pagode), as cadeiras da Brahma do bar do Tonhão (ambiente familiar) foram colocadas em fileiras, Elias no púlpito revendo as passagens bíblicas, Cicatriz com seu modelito impecável, terno branco, sapato branco, chapéu de palha, gravata vermelha e charuto barato aceso no canto da boca com a inseparável Bernadete reluzindo na cintura. Ao seu lado Divino que recepcionava as “ovelhas” desgarradas na entrada do templo sagrado.
Dentre as ovelhas que passaram a freqüentar o rebanho do pastor Elias de Deus, uma se destacava por sua dedicação ao Divino, não ao divino espírito santo não, ao escrivão auxiliar de pastor ex-traveco do tapetão, Divino. Era “ele”, Titinho. Afilhado de Medonho, Enteado de Marcão, Filho de Madalena, agora arrependida, nas horas vagas. – Garoto bonito – dizia Divino – Bom garoto. Como se dissesse bom para estar na cama comigo.
Aos sábados a congregação promovia festas para angariar fundos, sempre com ambiente familiar, onde Mc Chapéu comandava a galera com muito Funk e muito Rap, do jeito que a juventude gosta. Nestas festas se bebia, se fumava, se cheirava, mas tudo na maior honestidade e tudo a precinhos camaradas cobrados pelo próprio patrão Medonho, que se tornara um dos pilares da igreja.
A clientela era variada e os cultos de domingo eram sempre lotados. Participavam do culto ex-prostitutas, que depois que começaram a freqüentar a igreja passaram a transar e cobrar, só de vez em quando, na verdade, na verdade, só quando tinham clientes. Os ex-assassinos agora não matavam. Furavam, raramente uma vez só e deixavam o resto com Deus, que quase sempre aceitavam as almas dos pobrezinhos. Além deles ex-presidiários, ex-ladrões, ex-homossexuais, ex-psicopatas, até ex-aidéticos apareciam, mais esses pareciam que não curtiam missa, pois depois de uns meses nunca mais voltavam. Mas os mais assíduos, sem sombra de dúvidas eram os ex-viciados. Largavam de vez a maconha e a cocaína para comungar da erva sagrada e do pó abençoado. Amém.
Muitos cultos se passaram, muitas festas se realizaram, Cicatriz-Zé Pilintra apagou alguns fiéis-infiéis que o dízimo não pagaram, inspirando muitos outros malandros a se converterem. Mas convertido mesmo era Titinho. Dava gosto de ver, não perdia um culto e só sentava ao lado de Divino, ajudava a escolher os versículos, varria as escadas, não saia do quarto de Divino sempre estudioso.
Segundo as palavras do próprio Medonho. — Esse menino logo, logo vai se revelar. — A vizinhança sempre achou que já estava tudo revelado. — Olha a compaixão entre os irmãos, esse menino vai ser pastor! — Profetizou Medonho para o padrasto Marcão que coçava a cabeça intrigado ao ver o abraço fraternal e o beijo de despedida de Titinho e Divino após um longo dia de trabalho.
Apesar da conversão de Titinho, segundo a concepção de Medonho, fazendo pensar que ele era um rapaz dedicado, mas era macho, malandro e Flamengo. Desfilou pela boca de fumo com a camisa 10 do Rubro-Negro como se estivesse sobre uma passarela, alegre, leve, quase a rebolar. Que teria dito ele a Divino na despedida?
Não sei dizer, mas talvez tenha cantado para ele baixinho o hino-profecia de seu time do coração: “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo”.