Dos Planos da Minha Morte para a Morte dos meus Planos
Não lembro onde fica exatamente .... mas acredito que eles saberão ..... me levarão com muito gosto. Quando lá chegarem, futricarão sobre o mal zelo. Finalmente estarão certos; acho bom estarem certos dessa vez que não tenho como revidar. E até imagino as suas razões interrompidas pelo desprazer de não me poderem subestimar, quando lá estiverem a falar da péssima condição.
Mas ao passo que para mim é gratificante essa situação, também é lamentável. Ora, a última impressão que um homem deixa de sua imagem é o estado do seu túmulo. E eu, nem lembro ao certo o lugar do meu. Logo estarei lá; depois, não passarei de um monte de areia esturricada sem ao menos uma delimitação. Parte daqueles reais tão bem guardados no maleiro podiam ser para isso. Para belas flores, estátuas de cobre e um bom epitáfio. Juntei tanto dinheiro sem saber ao certo para quê, e só quando morrendo tenho planos para ele.
Não fossem tantos aparelhos, esses médicos ao meu redor me fariam lembrar as reuniões da repartição. Não que na repartição todos fiquem ao meu redor, mas lá eles se olham e sobrepõem suas idéias assim. Mesmo quando as reuniões são de confraternização. Aquele ali até me lembra o Antônio. O seu jeito de querer ser perfeito. Ainda tenho dúvidas de quem repudio mais, se o Antônio; por ter me dado esse emprego, ou se o resto do grupo que me julga empregado apenas por ser sobrinho dele.
O mais complicado de morrer não é a morte em si, e sim; imaginar a ânsia das pessoas correndo depois do funeral para a vida que deixei guardada nas portas, gavetas e caixas. Sobe-me um furor incontável ao imaginar os curiosos abrindo sedentos o meu apartamento para descobrirem os meus silêncios. Se o túmulo estivesse em melhor estado, talvez se dispersassem na discussão dos valores. Mas nunca me preparei para o dia da minha morte. E cá estou, sequer posso falar, com tantos aparelhos por todo o meu corpo. Mas lembro bem do carro sobre mim para livrar o cachorro.
Vivi todos esses quarenta e dois anos sem saber ao certo por quê e agora me pego morrendo. Estou despreparado. Nunca imaginei que um dia pudesse morrer, por desacreditar que realmente vivesse.
Não sentirei saudades da vida, isso se para onde eu for ainda me seja permitido sentir alguma coisa. Mas se esse for o meu único direito, preciso decidir algo para não desperdiçá-lo. Escolher sempre foi um verbo pesado para mim. Como é difícil conjugá-lo na primeira pessoa. Apesar de apenas ela existir nos meus dias. Não que esteja sempre comigo, mas de todas as outras é a que me faz mais seguro: a primeira pessoa. Se ao menos soubesse o tempo que ainda me resta. Desperdiçar a minha última escolha agora seria uma incompetência. Mas posso perceber que há pouco tempo, um parente chegou. Parentes, eles sempre me desagradaram... deduzo o horror com que comentarão as cartas da Ângela. Mas a culpa não foi minha, não estava preparado para ser pai.
Perceber que a hora está próxima e escolher algo da vida para levar até a morte me conduzirá a uma decisão insegura, embora elas também sejam assim quando disponho de tempo. Acho que o momento chegou. Estou nervoso, ainda não escolhi nada. O médico se aproxima depressa e com ele vem o meu parente.O que se faz nessa hora? Tudo está tão igual...
Como? Como posso ir para casa? E os planos que fiz para quando morresse?
Tantos planos jogados fora assim tão simplesmente, tantas preocupações ... tentei fazer escolhas, encontrei-me em recordações; e agora o meu caminho é a volta para casa?! Lá as minhas idéias jamais se efetivam. Lá, sei que os dias passam ao olhar para o espelho e não para o relógio.
De repente passo a perceber a distância da morte. Seria impossível reformar o túmulo. Ele não tem paredes e o seu chão é infinito. Ele amanhece todos os dias.