Os bárbaros, esses ingênuos

Ditinho vivia desnorteando a galera. Cara, que sujeito xarope! Era "meu carro" pra cá, "minhas minas" pra lá, "minhas raves", "meus tapas" e coisa e tal. Nessa história, eu era o advogado do diabo e os outros se derretiam, em sincera idolatria. Tem neguinho que é capaz de dar a alma por doze horas de música "techno" estourando os tímpanos. O lance é parecer "da hora", porque, naquele meio, a mulherada só vê a casca. O oco? Ah, chegado, o oco elas reparam quando é tarde!

Lá pelas onze da noite daquela sexta-feira, três de meus parceiros estavam mais excitados que o de costume. Eram a Branca, a Lee e o mala do Tonho Cascão. Branca tinha esse apelido por causa da mania que a gente tem de contrariar os fatos. Moça negra sapeca, risonha sem precisar fazer esforço, garota sangue bom e bonita como pouco se vê. Amiga íntima de Lee. Dessa eu tenho medo. Sei lá se dela mesma ou da sua aparência, com três piercings enfiados sob cada sobrancelha, outro no nariz, em argola, feito uma vaca. Fora os que não são muito evidentes, como o da língua, aquela bolota brilhante que só aparece quando a vadia esquece dos dentes podres e abre a boca. O Tonho, cara, que figura! Intitulava-se gótico. Eu mesmo sempre achei que fazia tipo para despistar algumas preguiças, como a de tomar banho. Até hoje eu não sei direito se são os góticos ou os punks que não se importam em andar fedorentos, mas tanto faz. A praia do Tonho Cascão nem era ser ligado em ideologias, desde que suas esquisitices tivessem uma desculpa.

Esperávamos por Ditinho sentados no meio-fio do estacionamento da praça que a gente chamava bobódromo. Ali se juntavam todas as galeras para ouvir som de carro, fumar e azarar uns aos outros. Uma trupe barulhenta, representando em unidade os papéis de caça e caçador, alternadamente, conforme os estímulos dos hormônios. Eu ali, batendo papo e torcendo pro maluco não aparecer.

Mais cedo, depois da aula, num campo de futebol, vazio por aquelas horas, havia-se juntado a meia dúzia de veneradores que, em volta do playboyzinho, ouviam-no contar sobre o som que instalou no Golf GTI zerado, presente do pai. Eu era daqueles que me aproximava e ficava ouvindo, apesar de achar as demonstrações patéticas as coisas mais bossais que podiam existir. O lance é que radicalizar não funciona bem com essas gentes: ou você finge que está dentro, ou é marginalizado, e aí, já era. Acabou você!

Ditinho tinha três passes livres pruma festa que aconteceria à noite no lugar mais bacana pra esse tipo de coisa, na cidade. Vinha DJ de fora, ia rolar bebida "quente" e amostras grátis de uns lances que, ele dizia sussurrando, levava neguinho até outros planetas. "Coisa de louco", repetia babando, parecendo meio doido e meio canalha, representado à perfeição um papel que exercia poderes mágicos nos seguidores que o ouviam. Ele daria os convites pra três de nós, mas estipulou uma tarefa, porque "uma rave como aquela era para gente especial, mente liberada", repetia. Eu tinha vontade de mandar o sacana ir para mil lugares, mas apenas dei um passo para trás, instintivamente.

-- Eu quero três aqui em cima do capô, sem roupa! Quem chegar peladão primeiro, leva!

Não houve disputa acirrada. Apesar da isca ser muito boa e do aparente desprendimento do grupo, a exigência colocou em xeque os conflitos íntimos de cada um, potencializados pela prática da hipocrisia que normalmente não os intimava para gestos concretos de abnegação. Foram poucos segundos de silêncio para que apenas a Lee cedesse. Enquanto ensaiava um streap-tease desengonçado, em cima do carro, percebia-se nos outros participantes um misto de assombro e expectativa pela visão nua da garota escrota e a ansiedade contida para juntar-se a ela. Quem a acompanhou, depois de longa pausa, foi a Branca e, em seguida, o Tonho Cascão.

A conversa vinha animada ali, no meio fio. O som altíssimo aparecia de todas as direções. Nuvens de fumaça escondiam as silhuetas na penumbra da noite. Eram hordas em ritual de acasalamento. Meus três amigos repararam o Golf chegando ligeiro, roncando alto e cantando pneus. Ele quase os atropelou, mas gargalhava ao sair do carro. Era "só uma brincadeira"... Não importava! Branca, Lee e Tonho riram também e entraram na máquina, satisfeitos.

Sentando ao volante, Ditinho olhou-me nos olhos. Pela primeira vez, não o fizera casualmente. A boca semi-aberta, num meio sorriso enigmático, em formato de "e aí?" fechou-se arquejando para baixo. Os olhos endureceram. Pisou fundo no acelerador e arrancou deixando, atrás de si, o cheiro desagradável da borracha queimada.

Acordei muitas horas depois de chegar em casa. O telefone tocou mais cedo que o habitual. Pouco depois, escutei a campainha e descobri, pelos passos duros e ligeiros que se aproximavam do meu quarto, que não se tratavam de visitas costumeiras.

O homem abriu a porta sem nenhuma cerimônia. Encarou-me e, indiferente como um autista, ordenou que levantasse. Havia uma intimação para que eu fosse levado à delegacia. Havia, também, três corpos no IML esperando pelo reconhecimento dos seus pais.