Faroeste candango

Zé enfiou a cabeça para fora da janela. Deu uma olhada longa, até onde a lateral do Gontijo permitia. Voltou-se decepcionado.

-- O homem da música disse que a cidade é linda, Maria! Deve de ser só no Natar!

-- Deixe de ser afobado, moço! Nós nem chegou ainda!

-- Como num chegou, mulhé? Vê os carro! Olha as praca, é tudo daqui mesmo!

O ônibus desacelerou para enfrentar mais uma barreira eletrônica, na altura de Valparaíso. Carmo do Rio Claro, de Minas Gerais, era, então, uma lembrança vaga, abandonada há mais de quinze horas e depois de uma quantidade indecorosa de paradas no meio do caminho.

-- Como pode ter tanto carro de Brasília e num ser Brasília, me diz?

-- Home, tô mais percupada é se a capitar é assim mesmo: uma viela cumprida com um pistão no meio, iguar as cidade do interior.

No banco da frente, encostado na janela, um menino miudinho, de olhos esbugalhados e aparência de ser mais novo do que demonstrava os catorze anos, ouvindo a prosa contada aos gritos, também estava inquieto. Será que o Congresso, que ele via na tevê no fim de uma avenida cheia de nada e grama, ficava na ponta daquele caminho?

O ônibus freeou bruscamente. O guri, que tinha meio corpo para fora, quase caiu.

-- Ô canseira desse povo! – gritou o motorista, quase parando em cima da faixa. É só aqui que os pedestres entram na frente do carro sem esperar. São todos super-homens, esses babacas!

O motorista praguejava contra os políticos: “essa cambada não sabe da vida do povo: fazem leis que não servem para eles mesmos; têm em um dia o que eu ganho num ano; não precisam andar de ônibus; gastam uma horinha para fazer um caminho de um dia de sorte na estrada”!

Juninho não entendia muita coisa, menos ainda os pais, angustiados como estavam para descobrir sobre o quê havia contado o João de Santo Cristo, no Faroeste Caboclo.

Passava do meio dia e a fome do garoto aumentou. Os pães de queijo acabaram logo cedo e o biscoito, comprado de madrugada em corrutela sem nome, numa das inúmeras paradas obrigatórias, tinha gosto enjoativo. Preferiu esperar pelo almoço, que, na roça, acontecia, mineiramente, às onze e trinta. Sonhava entrar numa pensãozinha, como tantas que existem perto de casa, e comer arroz, feijão, quiabo e carne. Se tivesse angu, seria bom! “Será que tem angu em Brasília”?

A família não veio toda. Cinco filhos haviam ficado com os pais de Maria, na roça. O mais novo os acompanhou porque os pais queriam a ajuda do menino esperto para entender os endereços – “é tudo letrinha, mulhé!” -- até chegar à casa da Nhá Dita. A velha senhora, irmã da mãe de Maria, quando esteve no Carmo, convidou a sobrinha para passar um tempo com ela em Ceilândia.

Zé Enchada, como era conhecido José Antônio Firmino, lavrador e serviçal de biscate, queria andar de metrô. “Vem logo, enquanto a passagem é de graça”, escrevera Nhá Dita, incentivando a família.

A mulher tinha ambição diferente. Ouvira dizer que a capital era um lugar de gente rica, que pagava muito bem para as pessoas fazerem os serviços da casa. “Esse povo não pega em sabão de pedra, fia”! Em segredo, sonhava passar um mês fazendo bicos como faxineira para juntar um trocado. Quem sabe conseguia comprar a máquina de lavar, finalmente? Gastando, então, menos tempo na lavagem de roupa dos sete membros da família, poderia ir para a lavoura com o marido, fazer mais um dinheirinho e melhorar as coisinhas da casa.

Enquanto alimentavam os sonhos, o Gontijo parou novamente. Pai e filho voltaram para a janela e contemplaram a cena: um comboio estava parado à frente do ônibus. Eram tantos carros quantas seriam as cabeças de vaca do coronel Fabrício, o homem mais rico do Carmo. O problema é que não parecia haver nenhum peão para tocar aquele gado estranho.

Cerca de quinhentos metros à frente, na direção esquerda, via-se a fachada de uma enorme construção, enfeitada por inúmeras placas e um letreiro enorme explicando: Park Shopping. À direita, o maquinário ocupava metade da pista. Tratores cortavam o chão, arrancando o asfalto e derrubando o produto nas caçambas de enormes caminhões.

Estavam na via EPIA e não perceberam a placa fincada pelo Governo do Distrito Federal: “O transtorno é provisório. O benefício é para sempre. Essa é mais uma obra do GDF”.

Duas horas os separariam do desembarque, na rodoferroviária. “Uma égua chegaria mais rápido”, atormentava-se o Zé. Juninho, que não havia esquecido a fome, comeu o resto dos biscoitos enjoativos. Logo depois, os despejou em jatos no corredor do veículo, antes que pudesse alcançar o banheiro, lá atrás. Maria rezava.

Quando, enfim, puderam esticar as pernas, o cenário revelou-se bem menos que majestoso. Descobriram-se num lugar apertado e sujo, de onde saíram topando as malas em pessoas com aparência cansada e gestos irritados.

-- Que nóis faz agora, Zé?

Juninho olhou para o pai e o percebeu abatido. Seus olhos procuravam, ansiosos, o motivo que o levou até ali. Não o encontraria tão cedo.

É verdade que chegariam seguros à casa de Nhá Dita e que, numa tarde de domingo, sairiam para conhecer a “Brasília de verdade”. A inocência, contudo, eles a perderam. Maria desistiu de trabalhar porque teve medo de ir para a rua: no segundo dia da estada na Ceilândia, um homem foi morto na beiradinha da calçada, junto ao portão da tia. Por causa disso, Juninho foi proibido de andar sozinho na rua e passou os quinze dias da visita preso em casa.

Zé Enchada jamais voltou à capital. Para ele, Brasília, que enchia os olhos quando a via nos cartões postais e na televisão, era mais bem explicada pelo final música. Ela o machucou como antes fizera ao João de Santo Cristo.