A menina e o menino

Um dia a menina abriu-se em um sorriso grave e contagiante. O menino, que era da mesma opinião simpática, também sorriu longe, olho no olho, pensamento no pensamento, com as mãos nas dela. De amor em amor, de corações sintonizados e almas próximas. Ambos estavam quietos, sorrindo para o infinito acontecer, na varanda da casa da menina, num momento de profunda paz, respeito, harmonia e promessas. Talvez fosse madrugada, tarde, horas negras de uma noite breve. Não importava. Já era hora dele ir. Não foi. Olhou-a com mais intensidade e afinco. E de repente o menino disse, com esse mesmo sorriso estampado:

- Te amo!

A menina sabia que sim, que aquilo era sincero como nunca, que a frase fora formulada não da boca pra fora, mas do coração para dentro, e que aquelas palavras soavam perfeitas e genuínas, fruto do desenvolvimento gradual de um romance antes conturbado, cheio de armadilhas e reveses, mas que, enfim, tinham vencido. E agora estavam ali parados, olhando nos olhos um do outro, sorriso aberto, e felizes. E felizes. Ela beijou-o com um carinho de mãe aqueles lábios doces e tão seus conhecidos.

- Também te amo, bebê. – foi a resposta, depois do selinho, que ela lho deu. Ficaram depois quietos, sorrindo ainda, amando o momento. Pareciam perfeitos, indestrutíveis, inalcançáveis. Viam-se unidos para todo sempre, longe de tudo e de todos, ele já velho, ela também, e mesmo assim acendidos em paixão e cuidados. Naquele momento, eles espiritualizavam o amor, a paixão, a vontade cega e voraz de desejar o desejo do outro. Neles, se possível fosse constar, neles estavam a felicidade de todos os séculos junta. Seus corações irradiavam a beleza da juventude, impregnados fortemente com o tempero do amor, da união, do afeto e das minuciosas carícias mútuas. Não precisavam de mais nada, além de ficarem ali, parados, olhando a áurea um do outro, fixos nos olhos fixos. Extáticos e inquebrantáveis. Arrebatados e mágicos. Livres e presos. Recíprocos.

- Pois, além de tudo, eu quero muito – ele dizia, às vezes, sem pensar no que falava.

- Você é minha riqueza perpétua... – ela completava, também mistificada.

- Ah, doçura infinita...

E assim permanecidos em palavras afetuosas, construções raras e verbos ricos, assim ficavam infinitamente próximos, humildes e orgulhosos de poderem amar. Às vezes, incontidos, beijavam-se breves – os lábios se experimentavam doces e cálidos. E sorriam novamente. Ele suportaria a presença dela pelos próximos trezentos mil anos. Ela suportaria a presença dele pelos próximos trezentos mil anos. Deus era generoso, pensavam. A vida era boa, podiam fazer de tudo juntos. Só precisavam, no máximo, estarem de mãos dadas, e todo o resto tornava-se superável e até fácil. A solidão não era o desejo de nenhum deles, ninguém poderia separá-los daquela perfeição quase divina, enviada, sei lá, pelos anjos, por Eros, pelos Cupidos ou até mesmo por Deus. Se pudéssemos fotografá-los naquele momento, era como se parássemos a beleza do universo em um retrato miúdo de uma grandeza incomum. Talvez de fato estivessem literalmente parados no tempo, vidrados numa realidade que era só deles, pertenciam somente a eles, e qualquer um que interferisse necessariamente seria expulso da vida por mãos também divinas. Não haveria porque incomodá-los, portanto. Deixá-los assim era também viver, dar sentido à natureza dos seres humanos, tão frágil e por vezes mesquinha, despida sempre dos encantos românticos, da essência vital e real do amor – condição exigida àqueles que desejam transcender. Deixá-los assim era amar a si mesmo, e impor um pouco desse mesmo amor à humanidade flagelada e quase inóspita, lugar de incômodo permanente e torturante. Enquanto estavam assim perfeitos, tudo se resolvia, o mundo era mais bonito até. Repetiam as doses de carícias, inventavam posições que eram confortáveis – sabiam sorrir para a vida com a benevolência de meninos puros e perfeitos, criações sublimes. Eram, por assim dizer, superiores de algum jeito, do jeito deles, da maneira como inventavam a vida, e procediam segundo suas vontades e necessidades sem se importarem com a opinião dos outros. Nunca que morreriam, nem faltaria coragem e fé. A fé que estabilizava aquele amor. Fé de criança que crê no Papai-Noel em tempos de natal. Fé religiosa e simbólica, a fé de todos os santos – oferta misteriosa do além. Por enquanto, o presente maior era estarem vivos e contemplativos, pacíficos e loquazes em artes de amar.

Impossível desperdiçar a vida, o que era oferecido gratuitamente aos dois, presente celestial e sem limitações. Arranjo floral de Blodeuwedd, evolução pacífica de uma paixão primeiro botão, depois verde, e hoje, talvez para sempre, madura e completa, sem querências. Fruto adocicado e avermelhado – nobre iguaria de banquetes divinais. Alguém algum dia chamaria aquilo de viver intensamente. Alguém, algum dia, saberia apreciá-los e ficaria convencido, categoricamente convencido, de que a vida fosse bonita, leve e suave. A madrugada avançava densa sobre os dois. E o mundo era intocável.

O menino era bonito, mais velho, sensível e inteligente; a menina, simpática de nascença, era também bela, loura, delicada e amável. Não que não tivessem passado. Claro que tinham. Se conheceram, no entanto, há pouco tempo, amaram-se rapidamente e agora estavam ali. Nada disso tinha importância mais. O que realmente importava era o que viria a acontecer, o rumo de suas vidas, de seus destinos – temiam uma separação inevitável, um desencontro casual de interesses, qualquer discórdia tola que fizesse separá-los definitivamente. Mas logo esses pensamentos se esvaiam, e a idéia de ficarem juntos, ali mesmo na varanda, quem sabe, permanecia, arraigava-se mais no espírito de cada um deles. Claro que brigavam, mas eram brigas tolas e inventadas sempre com a finalidade de voltarem rapidamente, apimentando a relação. Agora estavam satisfeitos, inofensivos um com o outro, sem hostilidades, sem desafetos. Uma serenidade quase melancólica pairava naquele ambiente coberto, por todos os lados, com delicadezas e muita, muita humildade num invólucro tenaz, pertinaz atividade de infância. A serenidade do amor os envolvia numa abstração quase impalpável, sem questionamentos e afirmações suspeitas. O ódio era um sentimento execrável, e o amor – lema de suas vidas. Pareciam, pois, quererem viver como nunca antes, engendrar projetos, uniões, quem sabe casamento até. Tudo estava azul para os dois. Inocência de meninos puros. O tudo era uma coisa só. Havia uma paz duradoura no ar.

Uma paz.

Paz.

Então, o menino levantou-se, beijou-a e foi embora pra sempre.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 09/09/2008
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