FILARIOSE
Não sei quem foi que descobriu que naquela noite os homens do Departamento de Endemias da Secretaria de Saúde iriam fazer a coleta de material para exame de sangue de todos os moradores do Barro a fim de detectar os portadores da terrível doença.
Não houve brincadeiras de pega, de garrafão, la coxia, pular corda, nada.
Parecia que a doença do sono tinha acometido todas as crianças.
Depois do jantar, com os olhos quase pregando de tanto sono, fui para a cama.
Nem foi preciso mamãe armar o mosquiteiro eu mesmo coloquei bem direitinho.
Custei muito para adormecer pensando como seria o tal exame.
Acordei sendo chamado.
- Vista-se e venha fazer o exame.
Foi a ordem que recebi.
Assim, na seca.
Direta.
Irrefutável.
O homem estava na sala conversando com meu pai...
Sobre a mesa os instrumentos medievais de tortura...
Maleta de madeira repleta de lâminas de vidro arrumadas em ranhuras, de forma a não se tocarem, apesar de estarem muito próximas umas das outras;
garrafa de álcool com um chumaço de algodão na boca;
depósito pequeno de vidro contendo alfinetes mergulhados num líquido amarelo;
prancheta;
lápis escolar com borracha bastante usada na extremidade sem ponta.
O assassino me olhou com aquela cara própria dos maníacos torturadores, dos carrascos sanguinolentos...
Colocou os óculos, pegou a prancheta e o lápis e perguntou meu nome, idade e com que mão eu escrevia.
Respondi com o fio de voz dos condenados a morrer sangrando e depois, talvez, ser esquartejado...
Ele fez as anotações, retirou a lâmina da maleta, anotou o número na etiqueta branca colada numa das extremidades, pegou o algodão embebido em álcool, um alfinete e segurou minha mão.
Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, o criminoso estava esfregando a ponta do dedo médio da mão esquerda, na lâmina que havia ficado sobre a mesa.
Com outra lâmina, ele fez o que hoje sei ser esfregaço.
Esperou secar um pouco, colocou todos os instrumentos dentro da bolsa de lona e a lâmina dentro da maleta de madeira.
Eu fiquei segurando o algodão na ponta do dedo.
É bem verdade que eu quase não senti a picada, pois o homem realmente sabia fazer seu serviço.
Durante alguns anos, essas coletas foram feitas com intervalos regulares, mas já não causavam o pânico da primeira vez.