Adinamia
Estava profundamente irritado com a duração do verão. Quase maio e o calor ininterrupto me deixava cada vez mais aborrecido. Num dia desses acordei e não vi claridade pela janela. Apesar de ser notívago, me deixava irritado não haver alguma claridade natural no quarto. Talvez porque isso me despertasse para o fato de que poderia estar quase na hora de sair. Sair para os aborrecimentos comuns da minha rotina e não para algo que pudesse me agradar. Não sei se era quarta ou quinta, mas o fator tempo não importa.
Tenho ainda algum prazer quando, alta madrugada, todos estão já recolhidos e, portanto, privados de ver meu corpo debilitado, ansioso por percorrer o espaço de seu domicílio para melhor conhecê-lo. Margareth tem um privilégio. Ela, na maioria das vezes, não me deixa irritado. Sabe que eu preciso muito dela e sempre me alivia um pouco quando está por perto.
Mas o verão não acabava e os insetos me irritavam. Cada vez ia para a cama mais tarde, pois assim sofria menos com os insetos. Parece até que fiz um pacto com eles: “olha, se eu for para a cama com o dia claro vocês me deixam em paz?”, e eles disseram “sim, tudo bem”, e então agora eu tenho duas coisas boas a meu favor: passo os dias trancado no quarto e as noites reconhecendo a parte de baixo da minha casa, quando sei que não serei importunado. Bem, isso estabelecido, preciso aprender a lidar com outros problemas que decorrem da situação, porque, exatamente quando o dia clareia e eu posso ter esperanças de dormir, o cachorro começa a choramingar no quintal, bem abaixo da minha janela, que eu não posso fechar totalmente porque o calor é insuportável e isso tudo me irrita demais. Como a essa hora já tem gente circulando pela casa, eu não me atrevo a descer para liberar o cachorro e nem a gritar para que alguém o faça, porque também não quero que ouçam minha voz, e então ligo o rádio, que já fica na cama mesmo, bem junto ao meu ouvido direito, para escutar notícias e, assim, tentar me aborrecer menos com as notícias em bom volume do que com os choramingos do cachorro e dos ruídos de gente circulando, até que alguém aja com inteligência suficiente para abrir a porta da cozinha, calando a boca do cachorro.
Quando pode, Margareth me traz café no quarto. Para mim é um alívio não ter de me expor para buscar café. Certa vez tive fome e Margareth não estava. Foi extremamente difícil e pesaroso ter que passar pela sala para ir à rua naquela hora em que havia gente em casa, porém, com agilidade, tive algum êxito em não ser visto por mais do que uns dois segundos. Fui ao mercadinho e comprei pão e frios e três latas de suco e acho que uma delas era de pêssego, que particularmente detesto, mas não tivera ali muita paciência de observar o rótulo porque estava preocupado com a volta, quando seria visto novamente por mais uns dois segundos até que desaparecesse escada acima e alcançasse finalmente meu exílio, minha segurança. Ainda bem que os dois sucos restantes eram de outros sabores, afinal, eu havia sido muito esperto e prático ao pegar três latas de cores diferentes. Uma delas era roxa, então quase tive certeza de que era de uva. Da última eu realmente não me lembro. A volta foi como eu havia imaginado mesmo: suado e tenso, segurando firmemente a sacolinha com minha refeição, abri a porta e me atirei de um salto ao pé da escada. Tinha que ser ligeiro, pois nessa hora fui visto por mais dois segundos e não iria suportar se ficasse mais irritado do que já estava. Pulei o maior número possível de degraus até atingir a porta do meu quarto, entrei e me tranquei e me larguei na cama exausto. Tentei relaxar por alguns minutos. Degustaria meus lanches assim que me sentisse menos nervoso.
Margareth vivia me lembrando de que eu deveria voltar ao Dr. Borges. Dr. Borges é renomado psicólogo e me deu instrução e material para que eu fizesse uma tal de reprogramação neurolingüística. Não que eu tivesse algum distúrbio, mas que (diziam) seria ótimo para melhorar a auto-estima, evitar stress, síndrome do pânico, enfim, essas coisas. Que eu fizesse algo que pudesse me levar de volta a um convívio social mais “normal”. Coisas que façam uma pessoa acreditar que deve ver e ser vista, ouvir e ser ouvida, inclusive dentro de sua própria casa. “Margareth me vê e me ouve”, pensei, mesmo assim segui as instruções do Dr. Borges por algum tempo e já era passada a data de nova consulta a qual não tive ânimo para comparecer. Urgia que se findasse o longo e sufocante verão para que eu pudesse ao menos raciocinar sobre o que fazer. Sem o calor escaldante talvez eu marcasse nova consulta.
“Meu Deus, a maionese”! Como pude me esquecer da maionese? Trancado em meu quarto, já estava menos nervoso e precisava comer meus lanches, mas... sem maionese! Não, não podia ser... estava ficando irritado de novo. Devia ter comprado também a maionese. É claro que havia maionese na geladeira, mas se eu não cogitava sequer a possibilidade de tentar voltar à rua para comprá-la, muito menos ir até a cozinha, onde certamente seria visto por muito mais tempo, talvez até mais que um minuto! Absolutamente, ir atrás de maionese agora, tanto no mercado quanto na cozinha, estava completamente fora de questão, e ter que engolir meus lanches secos, sem nem um pouquinho de maionese iria me deixar muito aborrecido mesmo. Então fui ao outro quarto, cuja janela é frontal, procurar por Montesuma, mas ele não estava na rua. Montesuma ficava sempre por ali, tomando conta de carros e fazendo pequenos favores a toda a vizinhança. Se ele estivesse ali, eu poderia jogar o dinheiro pela janela e ele iria ao mercadinho comprar a maionese. Pediria para que ele me trouxesse uma daquelas de caixinha e jogasse de volta pela janela... então eu a rasgaria com os dentes e meus lanches estariam completos. Resolvi permanecer observando a rua, na esperança de que Montesuma aparecesse. Para minha surpresa, quem apareceu foi Margareth. Corri de volta ao meu quarto e fiquei ansiosamente aguardando.
Senti grande alívio quando ela bateu na porta e entrou, mas permaneci calado, olhando para o nada, como sempre. Ela fez alguns comentários sobre o dia, com os olhos fixos na sacolinha sobre a cama. Depois voltou os olhos para mim e não falou mais. E nem precisava mesmo. Já sabia tudo que eu tinha feito, lia em meus olhos que eu precisava de alguma coisa.
Nem preciso dizer que ela não concordava com meu estilo de vida nos últimos tempos, mas, pelo fato de saber o que me levara a tal, relevava certas coisas e tentava não agravar mais meu estado. Desceu e então eu comecei a contar os minutos. Conforme o previsto, após três minutos e meio, lá estava ela de volta, com o pote de maionese e uma faquinha. Ela sabia de tudo mesmo. Previu tudo. Já sabia que ia chegar do trabalho e que eu estaria precisando de algo. Apenas de passar os olhos pelo ambiente, já concluiu que eu precisava exatamente de uma faca e do pote de maionese, e não hesitara um só momento: partiu escada abaixo e depois subiu de novo portando nas mãos aquilo que me era mais valioso naquela hora. Depois, sem dizer palavra, me deixou só para que eu pudesse enfim degustar meus lanches em paz.
Adormeci na penumbra do quarto, com a luz bem fraca do abajur e o rádio no noticiário de esportes. Não me lembro do que sonhei, mas sei que sonhei o tempo todo. Margareth não me interrompeu o sono porque já sabia que novamente eu não teria coragem de ir trabalhar. Provavelmente àquela altura ela já teria telefonado para o meu patrão. Uns dois dias antes ou talvez menos eu já escutara Margareth falando ao telefone: “não, ele não está bem, por favor compreenda a situação...” então deduzi que falava com meu patrão. Ela sempre tomava essas iniciativas para me ajudar e por isso eu confiava tanto nela. Quando acordei, percebi que estava sem o travesseiro, deitado na diagonal, meio de mal jeito e com o braço esquerdo pendendo para fora da cama. A voz do rádio já era do apresentador do noticiário da madrugada. Notei também que havia esquecido a janela totalmente aberta, mas não me dispus a levantar, apenas estiquei o braço até o abajur e aumentei a luminosidade do quarto. Entre as migalhas espalhadas pelo chão, uma barata de porte médio sorvia restos de suco na boca de uma das latinhas. Um inseto repugnante daqueles normalmente me deixaria apavorado, mas dessa vez nem me mexi, apenas fiquei observando. Não sei explicar, mas aquele bicho me parecia até amistoso. Achei que era macho e resolvi apelidá-lo de Gregório. Nesse momento senti uma brisa fresca, quase fria, que vinha da janela, e cheguei a ficar arrepiado.
Acho que era o fim do verão.