Lembranças

LEMBRANÇAS

Revirando um álbum de fotografias desbotadas junto com seu filho, o velho policial reavivou antigas memórias. Entre as inúmeras lembranças de sua infância, uma das que mais lhe enchia de ternura era a do seu avô materno. Como o neto sempre morou longe de Caruaru, o avô era para ele um ser mítico, daqueles avós que só se vêem em contos de fadas.

Os moradores mais antigos de Caruaru, em particular os da rua Três de Maio, no “pé do monte”, devem lembrar daquele senhor corpulento, de cabelos brancos, chapéu de aba larga, óculos escuros “Ray Ban”, e andar miudinho. Sempre perambulando pelas ruas da cidade ladeado por dois garotos. Um para empurrar o carrinho de perfumarias que vendia, outro para guiá-lo pelo braço. Seu Ananias, como era conhecido, era cego.

Uma doença mal curada lhe atrofiou o nervo ótico fazendo-o ficar cego aos quarenta e poucos anos, aposentando-o do serviço público e colocando-o em um mundo de escuridão, que conseguia iluminar com as luzes do coração e da alma.

Apesar das restrições físicas impostas pela cegueira, Seu Ananias nunca demonstrou fraqueza ou dependência. Ao contrário, se não fosse o tal garoto a guiá-lo pelo braço em suas andanças de vendedor de perfumarias ninguém se daria conta de que era cego. E como ele andava! A vender “gilletes” (daquela de uma lâmina só), desodorante Rexona, sabonete Phebo e pó compacto. Ah! Sim! Tinha também talco “Alma de Flores” e Leite de Colônia (do rosa e do verde), que vendia para uma clientela fixa e leal, as “quengas” do Mocó, antigo reduto da prostituição em Caruaru.

Toda a perfumaria era arrumada por ele mesmo, sozinho. Tanto no quartinho dos fundos de sua casa, como nas malas de couro que colocava no carrinho. Sabia onde estava cada coisa, sem nunca se perder entre as centenas de mercadorias que possuía. Às vezes era ele quem encontrava as mercadorias, enquanto o neto e seus funcionários perdiam um tempo enorme procurando no quarto escuro. Em segundos ele as encontrava.

Além do espanto que sentia ao vê-lo fazendo aquilo, o neto achava simplesmente incrível como ele conseguia saber qual o valor de uma nota de papel só passando-a entre os dedos. Aquilo só podia ser mágica.

Assim foi durante muito tempo, enquanto o neto continuou morando longe de Caruaru, mas quando foi morar definitivamente na cidade passou a ter mais contato com seu avô Ananias, e pôde, com isto, ver o quanto ele era humano, o quanto ele era uma pessoa linda.

Às vezes chegava em sua casa no finalzinho da tarde, ao escurecer, e encontrava tudo às escuras (sua avó, Dona Neném , nunca ligou muito para isto), e quase sempre achava seu avô sentado à frente de um velho rádio, marca Continental, ouvindo as últimas músicas antes de começar o “Hora do Brasil”, que ele religiosamente ouvia todos os dias. Aproximava-se do avô. Nunca pedia a benção, não precisava, já estava abençoado, e ficava brincando com seus cabelos, que de tão brancos pareciam fios de algodão.

Tudo naquela casa era mágico. Na entrada azulejada, de um lado havia uns anjos cantores pendurados na parede, e do outro umas pererecas verdes (até hoje nunca conseguiu entender a relação). No que seria a sala havia um quadro do Coração de Jesus, iluminado apenas pela tênue luz de uma válvula de televisão.

Por falar nisto, a televisão era um capítulo à parte. De válvula. Quando ligada, o neto ficava olhando admirado por de trás do aparelho, se divertindo vendo a pequena luz brilhando, “esquentando”. E raramente a televisão tinha imagem, só som. Também, para quê? Só quem “assistia” era seu avô mesmo.

E o cheiro?! Até hoje lembra o cheiro gostoso de família daquela casa, de aconchego, que entrava pela alma e aquecia o coração. Aquele cheiro que só a nossa casa tem e nós só sentimos quando fazemos uma viagem longa, ao retornarmos. Além deste cheiro, outro, menos agradável, de vez em quando se fazia presente na casa. Quando era época de tanajura, seu avô lhe incumbia da honrosa missão de pegar o maior número de formigas possível, levando-as de imediato para casa, onde ele esperava impaciente, enquanto a filha, muito a contra gosto, fritava as “tanas” na manteiga, para em seguida serví-las com farinha. O neto ficava sentado à mesa olhando seu avô com uma toalha amarrada no pescoço, que de tão largo dava trabalho de amarrar o pano, saboreando o cheiro (cheiro?!) das formigas fritando. A satisfação de seu avô era evidente, pois enquanto tamborilava os dedos grossos na mesa, de tempos em tempos engolia a saliva que lhe enchia a boca. Comia de colher, ajudando com a mão para não correr o risco de deixar nenhuma formiga no prato. E o neto que fosse pegar mais.

Outra atividade era engraxar os sapatos de seu avô Ananias. Não pelos trocados que lhe dava, mas sim para poder vê-lo calçando-os depois, ajudado por uma calçadeira de osso, já que seu “pé-de-laje” impedia de fazer isso facilmente. Além disso, era engraçado ver o sapato cheio de algodão no bico, pois Seu Ananias tinha o pé curto também.

Vê-lo fazer a barba era um espetáculo a parte. O estojo de barbear de um lado, a vasilhinha com água quente do outro, muita espuma (na orelha, nariz, por todo canto) e muitos cortes, uma verdadeira carnificina! Mas era uma coisa única de se ver, pois raramente ele aceitava ajuda para fazer a barba. Para o neto aquilo parecia um sonho.

Tinha um sonho também, seu avô Ananias. Ter um filho na Polícia. Achava o máximo, mas não teve oportunidade de realizá-lo, pois teve apenas uma filha.

Morreu de câncer, seu avô Ananias, e o mais triste para seu neto foi vê-lo preso a uma cama, sem poder caminhar mais, sem poder correr por Caruaru vendendo seus badulaques. Apesar disso, apesar de tudo, seus olhos nunca perderam o brilho e a luz. Seu neto nunca esqueceu.

Depois da sua morte, meio sem querer, seu neto acabou se tornando Policial, realizando, em parte, o sonho de seu avô.

Hoje, revirando as velhas fotos, lembrando de seu avô Ananias, o velho Policial se viu olhando para o próprio filho que brincava a seu lado, ....e pensando em seu avô Ananias...., onde quer que esteja...., pensou também como seria bom que ele pudesse estar ali e conhecer o bisneto, e ver que ele também tem pescoço largo, dedos grossos, e “pé-de-laje”, com muito orgulho. Quanto às tanajuras...., nunca mais pegou.

Garcia de León
Enviado por Garcia de León em 01/09/2008
Código do texto: T1156284
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