Traição
Estudávamos para um concurso público. Apenas isso. Ficávamos sempre na mesma mesinha do terraço. As filhas de Alice estudavam pela manhã e seu esposo saía de manhã cedo e só retornava após as oito da noite. Marina , a empregada herdada dos pais de Alice por ocasião do seu casamento, parecia que não gostava de enxergar nada que seus patrões faziam. Cumplicidade e silêncio estavam nela, fartamente.
-Alice, seus pés estão alisando os meus. O que quer?
-Desculpe, Arthur, não foi por querer.
Estivemos estudando por vários meses. Quando havíamos vencido quase dois deles, ela repetiu o gesto. Dessa vez eu aceitei os carinhos que fez com os pés também descalços. Estavam frios, lisos, como se untados d’algum creme hidratante, posto propositadamente.
-Ah! Que bom, amigo! Como é bom...
-Lembre que sou de carne e osso, além de amigo do seu esposo.
-Deixe aquele lerdo pra lá.
-Esse lerdo a mantém em tudo.
-Obrigação dele. Pago-lhe na cama.
-Não és uma mulher vulgar. Pagas? Na cama?
Ela levantou um pé até a altura do meu colo, mordeu os lábios, cerrou os olhos e ofereceu-se com um gesto quase vulgar.
-Marina vai nos ver!
-Marina não enxerga nem ela mesma.
Levantou-se, apanhou minha mão direita e puxou-me para que eu me levantasse e a seguisse. Subimos até o pequenino espaço onde se localizava a biblioteca doméstica.
-Aqui?
Levantou a saia curta, juntou-se a meu corpo e me excitou. No exato momento deixei de pensar nos perigos que nos cercavam. Satisfiz-me satisfazendo-a. Limpou-se e a mim com o pano fino da cortina. Que horror! Emporcou meu sentimento em relação a ela. Senti-a pequenina, vulgar, anti-higiênica.
-Gostei demais...
-Coitado do seu marido!
-Ele merece! Sabe esta cicatriz sob o meu olho esquerdo? Um murro dele. Além de nós dois, só você sabe. Esta mancha escura em minha coxa? Um chute perverso!
-E você, o que fez para merecer?
-Pedi-lhe amor, cama, sexo...
-Há um furor em suas partes.
-Desde criança. Aos oito anos fui tocada por Marina.
-A empregada?
-Exato. Gostei e trouxe-a para tomar conta de mim. Se Álvaro não satisfizesse meus desejos diários, ela o faria por ele, mesmo que a contragosto.
-Você é bissexual?
-Odeio isso! Não! Não sou! Apenas resta-me ela para me satisfazer. Com você agora, não mais se aborrecerá quando deixar de chamá-la para pôr os sais na banheira. Odeia quando a chamo.Esses sais são a metáfora dos meus pedidos.
-Por que não se separa?
-Minhas filhas adoram o pai. Meus pais o veneram. Socialmente somos um par perfeito.
-Têm uma vida de aparências.
-Foi o que a vida reservou para mim.
Deixamos as estripulias do ambiente doméstico e passamos a fazê-las entre as paredes dos motéis. Ela pagava todas as despesas. Não podia negar-lhe essas coisas porque também me viciei nas tarefas proibidas que fazíamos juntos. Passaram a ser-nos uma atividade comum, nas quais não mais via pecado algum. Ela era um doce furacão safado que me levava às nuvens. Até quando estava naqueles dias, não dispensava desarrumar os lençóis do quarto de motel e escalar os desejos mais incomuns aos normais. Fantasiosa demais era ela.
O vício perigoso cresceu tanto entre nós, que nos tornamos seus escravos. Tudo o que pensávamos era ao seu redor. As melhores horas eram durante o dia, quando o sol claro ardia e então mais difícil pensarmos no pecado que cometíamos. Os concursos se multiplicaram e nós a perdê-los todos. Não estudávamos mais, apenas fazíamos amor e amor, nos limites e nos deslimites do culturalmente permitido.
Observei que todas as vezes que dona Esmeralda, sua mãe, entrava em casa, sua filha se entristecia, baixava a cabeça, perdia o interesse, já pífio, pelos estudos. Indagava-lhe sobre essa mudança e nada ouvia como resposta. Era como se fugisse das respostas.
-Sua mãe incomoda você?
-Sobre isso não lhe falo nada.
-Estranho...
-Nunca lhe perguntei sobre a sua vida pessoal. Apenas se incomode com as nossas. Por que quer saber sobre a minha? Estou com vontade de...
-Novidade! Seu furor não a deixa saciada nunca. Seus excessos andam enjoando-me. É preciso cair na real. Somos quarentões...
-Para me aguentar, homem tem que ser bom, sadio, guloso. Você está querendo parecer com o outro, o bobo, meu...
-Você é cruel. Como Ringo, não perdoa, mata. Acho que vou dar o fora antes que me sufoque e mate.
-Você vê qualquer saída nesse jogo?
-Várias.
-Engana-se. Sei a largura que há na casa dos botões de suas camisas. Quer mais? Quase tudo do que fizemos juntos, está gravado ou em vídeo ou em áudio. Ainda tem coragem para me enfrentar?
-Você é um monstro louco!
Ainda hoje tenho meus passos vigiados por ela. Vemo-nos nas muitas reuniões sociais que frequentamos. Somos sócios de um mesmo clube, em que vez por outra tenho que ir com a minha família. Meu filho mais novo é amicíssimo de sua filha mais velha. Têm quase a mesma idade. Às vezes pressinto como se quisessem namorar. Para mim não há maior prisão do que o ócio da culpa. Seus vazios ocuparam um pesadelo hediondo que me sufoca após amargar forte no céu da boca. Minha esposa a adora. Acha-a uma dama; é esse o comportamento social que adota quando em público.
Quando meu espírito evoluir e quem sabe mudar o jeito de minha carne, acho que serei um monge budista. Talvez um ermitão a viver isolado das coisas mundanas. Para sê-lo, quem sabe, não tenha que fazer concursos públicos ou estudar em locais impróprios, com pessoas erradas.
Ontem eu atendi a um telefonema dela. Implorava-me que a ouvisse. Quis marcar um encontro fora da cidade. Neguei peremptoriamente seu pedido. Até neste instante ainda sinto o coração a bater apressado ao lembrar-me da ameaça que dela ouvi ao telefone. Não sei se volte a cometer os velhos pecados de ontem ou se apresse minha morte de amanhã, para hoje. Meu maior sentimento tem nome: desespero.
Eles se juntaram três anos após. Ela continua abafando-o de tudo. É presa que, além de morta, ainda respira letargicamente.