Uma saudade uma janela e a garoa

(Qualquer semelhança com a ficção é pura realidade)

Saiu da estação virou a esquina olhando pro chão molhado da garoa e pisando forte nas poças só pra ver a água espirrando em volta água de garoa é lágrima pura que fica brotando o tempo todo sem a gente querer então pisava forte naquela água pra fazer de conta que pisava de raiva nas lágrimas que não queria mais derramar viu o prédio a janela e a luz fraca mudando de tonalidade ora azulada ora amarelada sinal de tevê ligada virou outra esquina entrou na doçaria que antes se chamava doceria ficou olhando os doces hesitou teve vergonha de que reparassem em seus olhos inchados voltou pra esquina ficou encostado no poste lá estava o prédio de novo levantou a cabeça e lavou o rosto na garoa olhou pra janela bem alta alta alta aquela luz que oscila dez da noite é a novela a doçaria vai fechar voltou comprou o pudim aquele de sempre foi pra esquina de novo olhou lá pra janela outra vez bem alta muito alta pensou em acenar só pra fingir que era como antes hesitou resolveu não acenar iam pensar que era um louco ali com um pudim numa mão e a outra acenando pra ninguém muita gente saindo da estação naquela hora o orelhão em frente quis discar um número qualquer só pra dizer estou subindo e sentir a sensação feliz de antes resolveu não fazer isto ficou lá encostado no poste começou a comer o pudim lentamente bem devagar pra sentir melhor o gosto aquele gosto gostoso não o gosto do pudim mas da lembrança o gosto de quem não estava ali repartindo com ele o pudim de sempre uma mordida e a cabeça levantando de novo pra molhar o rosto e ver a janela lá em cima muito alta tão alta que já estava com dor na nuca e a janela impassível sem vida só aquele lusco-fusco de tevê ligada quase meia-noite o pudim acabou e com ele aquele gosto do que era antes então sentiu raiva muita raiva dele mesmo e uma dor esquisita e uma coisa parecida com remorso e uma vontade de gritar mas gritar bem alto muito alto mesmo já que estava fazendo aquele papel idiota então que pelo menos houvesse público pra ver e as pessoas ainda saindo da estação os últimos trens que levam pessoas cansadas pras suas casas e nenhuma pessoa sequer estaria preocupada com ele então começou a rir de nervoso ficou tão nervoso que começou a rir mas um riso estranho que não fez o choro parar como é que pode alguém rir chorando ou chorar rindo que absurdo olhou uma última vez pra janela alta alta alta alta e aquela luz lá do mesmo jeito como quem diz não tenho nada a ver com isso levantou o braço com vontade de acenar mas lembrou que não era mais pra acenar então coçou a cabeça pra disfarçar e olhou pro chão molhado da garoa e começou a andar em direção à estação mas decidiu não pegar o último trem e foi embora a pé pisando forte nas poças só pra ver a água espirrando em volta.