Cães e Cadelas
Tem dias em que o sol brilha mais do que deveria, ilumina além do que é superficial e a luz penetra em partes virgens da natureza humana. Nesses dias, o calor faz o sangue correr contra o fluxo, doce o salgado, amarga a lágrima. Quando o pênis penetra a vagina, os amantes transpiram o sêmen e os cheiros mais primitivos, fazendo fumaça pelo quarto e em paredes rachadas. A língua gosta do suor que banha o corpo, a língua que banha. Foi em um dia desses, esmurrando as paredes, acendendo cigarros, salgando a água, olhando descompassado, ficando calados, foi em um desses que um homem foi esmagado.
Era um quarto pequeno de um prédio abandonado, no centro da cidade, era apenas um quarto entregue a baratas, mas então seria o lugar onde Cecília e Luis se amariam. Cecília conhecia o lugar, ia lá de vez em quando para fumar “unzinho” com as amigas depois do trabalho, plantar sementes na cabeça, nunca gostou da viagem, mas havia naquele quarto uma poeira que a encantava, ela se sentia em casa, como que catando restos de comida na cozinha escura. Quando Luis lhe perguntou onde poderiam se encontrar, não pôde pensar em outro lugar. Discretamente, à noite, tratou de levar uma cama e quase limpar o ninho, pediu educadamente que os moradores de até então se retirassem: uma barata ainda quis protestar, mas ao olhar Cecília não pôde deixar de enternecer-se debaixo da casca. Cecília tinha cabelos longos, encaracolados e não volumosos, lindos sobre sua pele morena e emoldurando seus olhos vivos, assim sua sombra se projetava na parede pelas velas de chamas oscilantes que trouxera por saber não haver eletricidade no prédio, era assim que a via a aranha que saía elegantemente pela porta que Cecília lhe indicava.
Cidade quente, não venta. Carros atropelando cães e não é assassinato. As vísceras sujam o asfalto e grudam nos pneus dos carros que levam para casa os pequenos depois de terem acordado cedo para irem para o colégio, cansados. Café da manhã, almoço. Na mesa, carne de cachorro, sorrindo, calados, assando na chapa de pinche. Quarto quente, Luis e Cecília calados, suados, nus.
Cecília, sentada na cabeceira da cama, olhando para o vazio do seu colo e suas pernas entrelaçadas como Buda, uma mão sobre o joelho e outra para fora da cama com um cigarro apagado. Vejo agora que os seios de Cecília não são tão bonitos, ela não tem a idade do mundo, seu ventre cansado faz dobras. De cabeça baixa, seus cabelos escondem, mas eu sei, olhos cansados. Luis está sentado no chão, está encostado na parede, displicente com sua nudez, observando a fumaça do cigarro, tragando o sol que entra pela janela de abas quebradas, (nunca mais vai chover, tivesse outras vezes fechado as portas, posto grades nas janelas... mas insistia em sorrir enquanto nuvens se desfaziam). Sei que Luis não pensa em nada disso, ele gosta de Cecília. Não é bonito, mas sua maneira de fazer sorrirem os outros o torna irresistível. Não ousaria descrevê-lo, pois, apesar da luz, ele se esconde sempre e não me deixa vê-lo, Cecília nunca me disse, mas eu sei que não é bonito. Calados, suados.
Por que o fim? Perguntam-se e não querem responder. Cecília levantou a cabeça e tinha os olhos secos, Luis a esperava.
— Por que a gente não pode mais se ver? — perguntou Cecília em uma voz distante.
— Não fale agora. Não vê que não quero conversar? É tão difícil assim ficar calada?
Cecília novamente escondeu o rosto entre os cabelos. Suponho um sorriso.
— Você é um idiota. Sabia? Garoto idiota. — então desceu da cama e pôs-se a se vestir vendo-o permanecer quieto —. Eu sabia que seria assim, eu sabia, nunca daria certo. Uma mulher como eu e um garoto que não sabe a diferença entre uma mulher de verdade e uma puta.
— Putas é que são mulheres — acordava —. Você é apenas uma mulher mal amada, uma qualquer que nasceu para ser pasto.
Ninguém iria chorar, não valia a pena, nunca deixaram claro o que sentiam um pelo outro.
Foi rápido, havia apenas alguns meses. Luis procurava uma camisa para dar de presente para seu pai que estava de aniversário. Há tempos não ia ao centro comercial, mas tinha o cartão de uma loja que lhe garantia pagamento em até cinco vezes, perfeito. Quatro da tarde, muita gente se debatendo, sorrisos entre iguais, cara fechada para estranhos, quase ninguém realmente comprando, apenas olham e têm pressa. Após muito andar, enfim achou a loja que procurava, mal pôs o pé dentro e já veio um enxame de vendedoras sorrindo e lhe perguntando o que desejava, ele sorriu para a loira, mas então viu Cecília e não teve dúvidas. Sim, ele desejava algo, desejava beijá-la e comprar uma camisa.
— Então o garoto quer uma camisa para o pai? — garoto? Isso não o agradava.
— Sabe como é, fazer uma média com o velho, quarenta e nove anos e ainda com saúde. — SAÚDE, o uniforme não a fazia feia, camiseta branca com o nome da loja em amarelo e uma saia vermelha lhe revelando qualidades indizíveis, puta saúde — O velho é gente boa.
— Bem, eu sugiro uma destas, são muito elegantes. — elegante, jovem — Vai deixá-lo atraente, jovem como você.
— Essa azul é bonita. (Qual o seu nome?)
— É bonita sim. (Cecília. Qual o seu?)
— Ah, meu nome é Luis. Eu acho que vou levar essa. (Cecília? Como a poetiza. Bonito nome.)
Não é preciso dizer que, além de perguntar o preço, perguntou o telefone, daí foram para a cama sem mesmo tirarem a roupa.
Inferno. Claro que Cecília não era uma puta, mas sabia todas as artes do amor, nunca fora mal amada, sabia escolher seus amantes, na cama sabia como desfazê-los, destroçá-los e depois espalhar seus pedaços pelo chão, o cheiro pelas paredes. Eu gosto de ver Cecília amando, transformando os homens mais sóbrios em sádicos violentos e depois arrependidos. Pobre Luis, tenho pena dele, Cecília não me disse, mas não era bonito, e, ao saiu do quarto, ainda pôde ouvi-lo chorando sufocado e se deixando virar poeira, outro cão pregado no asfalto.