O cheiro e o poste
Havia apenas algumas poucas pessoas em quem Valdevino botava fé. Entre os tops de sua lista estavam Neide e Manoel, sua esposa e o melhor amigo e primo, respectivamente. Podia conversar com os dois por horas, e nunca deixava de analisar uma opinião deles, mesmo que fosse algo negativo a seu respeito.
Nutria pelos dois um sentimento profundo quase igual, exceto que pela esposa sentia também a necessária atração física. Mas, excluindo esta última, a emoção era a mesma. Não podia imaginar no mundo alguém que tivesse relações tão importantes, alegres e perenes como as suas, e baseava sua existência nisso.
Fazia uns meses que Manoel estava disputando uma vaga muito concorrida em outra cidade e viajava back and forth muitas vezes por mês para participar dos infindáveis processos seletivos. Até que naquela terça a confirmação que Manoel tanto esperava saiu. Precisava estar presente na empresa no próximo dia pela manhã.
A primeira pessoa para quem ligou foi Valdevino. O amigo, quase sem conter a respiração, disse que fazia questão de levar Manolo até a outra cidade.
--- Mas são mais de 300 km! - protestou Manoel.
--- Nem que fossem mil! Vou avisar a Neide pra arrumar nossas malas e nós vamos hoje mesmo. A gente se arranja num hotelzinho, mas amanhã você não pode ter olheiras.
E assim foi. O interior do veículo simples, muito velho já, tinha uma atmosfera de alegria intensa e singela, que não cabia lá. Por isso, as janelas ficaram abertas durante toda a viagem. Apesar do cansaço, foram cantando, contando causos de outros tempos e matando o tempo. Chegada determinada altura do percurso, porém, Manolo e Neide se deixaram levar pelo sono, enquanto Valdevino dirigia e tinha pensamentos diversos.
Queria saber que impacto a mudança do amigo pra outra cidade teria em sua vida, se ele seria tão feliz apenas com Neide, se Manolo não cresceria na empresa e até mudaria de país, se estaria aqui para batizar o primeiro filho que um dia Deus iria mandar, se teria dinheiro para visitar com certa freqüência e tantas outras coisas.
Imerso em tais pensamentos e na música da rádio AM que embalava os dois seres mais queridos, percebeu que Neide sussurrava alguma coisa incompreensível. Valdevino desligou o som e se aproximou mais da esposa para tentar entender que diabos a mulher falava. Não conseguiu. Pensou até em acordá-la, mas acabou acreditando que era um sonho qualquer.
Neide silenciou por alguns minutos, mas voltou a murmurar. Desta vez, Manolo, num gesto sonâmbulo e automático, saiu do fofo encosto do banco traseiro e enlaçou a mulher pela cintura, provavelmente sem reparar que havia um banco entre eles. Ela, assim que sentiu o braço do homem enlaçando-a, esboçou um sorriso sonolento e um suspiro de satisfação, e voltou a dormir sem mais interrupções.
Valdevino, com toda sua confiança e simplicidade, não podia crer no que tinha presenciado. Neide sussurrava muitas vezes durante a noite e ele nunca sabia o que fazer para fazê-la parar. Como Manolo sabia? Certamente nunca tinham conversado sobre um assunto tão íntimo a ponto de o amigo saber o que apaziguava o sono torto de Neide.
No meio da escuridão absoluta, Valdevino lutava para não perder o controle das mãos, já que estas tremiam sem cessar. Sentiu um negócio amargo sair da boca do estômago e chegar até a ponta da língua. Queria engolir aquilo, mas era demais de ruim. Teve ânsias.
Pensou em acordá-los aos berros, em atirá-los do carro, em parar na beira da estrada para conversar sobre tudo e ter a certeza de que não era uma ilusão noturna provocada pelo cansaço e pela vista cansada pela escuridão.
Deu-se conta de que chorava. Soluçava. Amargava. Pensava. Enlouquecia. Por que as pedras mais duras são atiradas pelas pessoas em quem nunca atiraríamos sequer uma lasca de madeira? Não achava resposta.
Havia uma última tentativa. Se pedissem para que Valdevino reconhecesse o cheiro de Neide entre tantos outros, poderia estar vendado, bêbado ou o que fosse... o cheiro dela era inconfundível. Era único e embalava todas as manhãs em que acordava para trabalhar. Ela exalava o cheiro de que ele mais gostava no mundo.
Inclinou-se sobre ela para senti-lo, numa esperança desesperada. Foi aí que farejou os dois cheiros diferentes misturados no corpo de uma única pessoa. Não podia ser! Parou o carro no acostamento da noite e inclinou-se sobre Manoel. Dois cheiros em uma pessoa, mas o que mais se dilatava na pele do amigo era o de Neide, e dois cheiros só se misturavam daquele jeito quando duas pessoas dividem o mesmo suor.
Os dois dormiam profundamente. Manolo com a testa apoiada na parte de trás do encosto de cabeça do banco de Neide, e ela segurando firmemente o braço familiar que enlaçava sua cintura de fêmea bem feita e jovem. Eram dois cheiros diferentes se misturando aos olhos de Valdevino.
Se ficasse parado faria uma besteira. Voltou ao volante com uma violência voluptuosa. Queria voar. Acelerava o máximo que o carrinho velho podia e não se sentia satisfeito. Não conseguia se livrar daquele ruído na mente: ora escutava seu nome na voz de Neide, ora na voz de Manolo, mas a dor aguda vinha quando as duas vozes se misturavam.
Felizmente, estava perto da cidade onde precisava chegar, porque já avistava o primeiro poste a iluminar o distrito minúsculo anterior à metrópole. Sentia este alívio e uma esperança de nunca mais ouvir a voz de nenhum dos dois traidores de tudo o que ele tinha e era. Mas como iria fazê-los tomar distância de sua vida? Sabia que eles também não podiam viver sem ele. Ele, porém, não queria mais viver com eles. Poxa! Como iria passar os dias sem Neide e Manoel? Nem lembrava mais de sua vida antes de conhecê-los.
Todos os músculos de Valdevino saltavam, como que querendo uma libertação. Sentia-se mais cansado do que se tivesse feito a viagem a pé. Não podia viver com eles. Não podia viver sem eles.
Aproveitou a oportunidade antes que o poste solitário passasse. Enfiou seu pedaço de lata tão querido de nariz na luz artificial a mais de 100 km/h. Concluiu de todos os seus pensamentos que o carro precisava muito daquele encontro com o pedaço de madeira.
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