... E MINHA MULHER CANTAVA MAMA ÁFRICA, DO CHICO CÉSAR
Brasília-DF, 21/08/2008
Era sexta-feira, quando ao cair da tarde, depois de um expediente estafante, resolvi tomar uma cervejinha no bar do chopp, do Severino, um pernambucano porreta, que fica lá na esquina só observando os que passam. O bar e o Severino não ficam muito longe de onde eu moro. Depois de um tial meio azedo e cansado, a mulher , num sorriso amarelo, bronqueou e perguntou de que adiantava fazer regime se não conseguia ficar um dia sequer sem a cervejinha. Resolvi então, até pra descarrego da minha consciência, fazer uma caminhada em volta de minha quadra. Afinal seria bom mesmo, pois não faz muito tempo que mudamos pra essa quadra e seria bom pra ver as pessoas do bairro. Depois de andar, não mais que umas quatro voltas na quadra, resolvi sentar, num banquinho, bem próximo ao jardim da igreja de São Benedito, pois já não aguentava mais. Não é fácil, ufa!, carregar mais de cem quilos.
De repente dona Carola, uma vizinha nossa, conhecida de todos do bairro, levada a tomar a frente em movimentos sociais da paróquia. Junto com ela, vinham mais duas distintas senhoras, dona Maroca e dona Lolota que, com um leve sorriso, me cumprimentaram e logo, as três, se achegaram de mim e perguntaram: - Olá, como vai a dona sua esposa, vai bem? E os meninos? Assim não perderam tempo e se apresentaram como membros da pastoral da família da igreja, que haveria um encontro de casais com Cristo e que gostariam que nós, eu e minha esposa, participássemos. Marcou uma visita lá em casa para o dia seguinte. Ficou tudo certo, às 08:00 horas da noite em ponto, lá estavam elas: plim .. plom ...; plim ... plom.... . Abrimos a porta. Vestidas com camisetas indicativas do encontro, seus rostos eram só alegria. Fizeram-se acompanhar do marido de uma delas, mas não consigo lembrar de qual, ele era meio calado. Não importa.
Minha esposa toda hospitaleira e receptiva, preparou pão de queijo e guaraná, e disse que também tinha café. Minha esposa estava adorando aquele encontro, pois afinal se sentia privilegiada em ter sido escolhida para participar daquele encontro. De qualquer forma, sei que a maior alegria dela foi ter acontecer de eu ser abordado pelas senhoras e, de alguma forma, contribuir para que elas viessem nos convidar. Minha mulher estava em êxtase, por certo pensando o quanto eu melhorei, aceitando até convites de igrejas!!! Quanta mudança!
Depois de conversas amenas, sobre o padre novo que chegara na paróquia e as freirinhas que ajudavam, a comunidade estava se organizando e precisavam de casais para ajudar nos diversos serviços pastorais. Depois de nos convidar e, evidentemente, termos aceito o convite (eu não era louco de contrariar minha mulher), já indo pra tomar o lanche que tínhamos preparado, a dona Carola disse: -Ah! Sim, desculpe, quase ia esquecendo. Vocês são casados na igreja? Eu que já mastigava aquele delicioso pão de queijo, ao olhar a preocupação e a cara de espanto de minha mulher, me engasguei de tal jeito que fiquei com falta de ar. As pessoas ao me ver naquela situação não sabiam o que fazer. Enquanto a dona Carola corria pra cozinha pra pegar uma água, a dona Lolota batia em minhas costas. E olha que a dona Lolota era uma italianona, de ascendência alemã, tinha quase dois metros de altura e uma mão que dava medo. O braço, então, sei que dá pra imaginar. Pois bem, voltando ao meu engasgo. O tapa da dona Lolota nas minhas costas foi tão forte, que um pedaço de pão de queijo voou da minha boca e caiu dentro da bolsa da dona Maroca. Aquela cena nojenta, com pedaços do pão de queijo embebido em babas da sofrida garganta era repugnante. De qualquer forma, minha esposa educada e pausadamente providenciou a retirada do pão com um guardanapo. Que alívio!
Voltamos a conversar. Então dona Carola, retomando o assunto voltou a insistir: - vocês se casaram no padre? Meio que envergonhados, perguntamos o porquê dessa pergunta. Dona Carlota, magrinha que dava pena, comparada então à dona Lolota, dava até pra chorar! Ela era magrinha mas tinha uma voz forte e firme. E disse: - É porque quem não é casado na igreja não pode participar no Encontro de Casais com Cristo! Asseverou, firmemente. Para nosso espanto, pois pensávamos que o encontro seria com Cristo e não com as normas da igreja. De qualquer forma, ficamos tristes, pois não éramos casados na Igreja e ainda mais, a minha mulher já era a segunda, e eu já era o terceiro dela. Resolvemos falar de nosso filhos pra elas: do meu primeiro casamento tínhamos dois filhos, dos casamentos anteriores dela, vieram dois, e nossos, em comum, tínhamos mais dois. Eram seis lindos filhinhos, o mais velho de todos já estava com vinte e seis anos e o mais novo com quatro. Diante disso, elas pediram desculpas e disseram que infelizmente não poderíamos participar do Encontro de Casais com Cristo.
Diante da cara de vergonha e decepção da minha mulher não me contive. Antes que elas saíssem pedi a licença para que me ouvissem também. Começando num tom moderado comecei a me defender citando os argumentos que tinha. E comecei definhando sobre a história da Igreja. Sobre os papas casados, sobre os papas que tiveram amantes, tiveram filhos, etc. Sem entender o motivo daquela moral, inquieto, questionava ainda sobre esse Jesus Cristo que elas pregavam. Que Jesus é esse? Ficou por demais evidente a tremenda discriminação com os casais de 2ª união. No nosso caso então o que seria, pois da minha mulher já era o terceiro. Afirmar idéias como essas, de libertação, de que Jesus veio para os pecadores, para os doentes, etc. dentro de alguns movimentos/serviços de nossa querida igreja católica, significa colocar-se num paredão de fuzilamento. É ter a coragem de ser escrachado, às vezes até publicamente. E continuei perguntando, agora com um tom mais elevado, pois não conseguia aguentar ver o rostinho tão desanimando da minha esposa, sendo preterida daquela forma: - afinal esse encontro é com Cristo, aquele que pregou e viveu, como ninguém, o amor ou é um encontro com normas retrógradas eivadas de preconceito, construída sob a égide de um poder manipulador e de interesses escusos???
Não teve jeito. Fiquei sem resposta, pois sorrateiramente elas saíram de nossa casa, avisando que ia levar o nosso caso para análise do Padre.
No domingo, pela manhã, resolvi ir à missa e conhecer esse Padre e perguntar sobre o assunto. Lá encontrei um padre sisudo, estrangeiro, recém chegado da Polônia. Estava em missão pelo Brasil. Ainda não tinha aprendido direto a falar o português. Com aquela voz de sotaque carregadíssimo indagou: Deseja falar comigo? E comecei a falar a mesma coisa que havia falado pras donas Carola, Lolota e Maroca. Ele só me ouvia e parecia não entender nada. Quando perguntava uma coisa ele respondia outra completamente diferente. Vi que não tinha jeito, resolvi, então, falar com o sacristão.
O sacristão me disse que passou pelo mesmo problema, só que foi com a sua filha. E me contou que ela tinha 16 anos, era batizada naquela paróquia, foi crismada e participava ativamente do movimento de jovens. Houve, então, um fato interessante e que muito tem a ver com o que aconteceu comigo e minha mulher. Ele, que tinha uma voz mansa e branda, começou a me contar: “Um tempo atrás estava pra acontecer um grande encontro de jovens da diocese, com presença do bispo, dos monsenhores, vigários e toda a hierarquia. Foram selecionados os melhores jovens da paróquia para apresentar as pastorais da juventude. E minha filha se inscreveu. Faltavam ainda uns três meses para o grande evento, quando minha filha, tendo se envolvido amorosamente com seu namorado, descobriu que estava grávida. Imagine, o senhor, o dilema que foi para nós contarmos pro padre e a comunidade que a minha filhinha estava esperando um filho. Como seria a reação dele? Como receberia a comunidade aquela notícia? Minha filha, extremamente desolada com o fato de termos que ir falar ao Padre, visto que ela queria muito poder participar daquele evento dos jovens. Quando lá chegamos diante daquele padre que nem sequer entendia direito o que a gente falava, a minha filha começou a chorar rios de lágrimas. Quanta piedade eu senti naquele momento. Mas o padre, implacavelmente, depois de descobrir o motivo do choro, seca e peremptoriamente declarou: infelizmente você não poderá participar, pois no dia do encontro sua barriga já vai aparecer e não será bom que as autoridades vejam que uma menina ainda, de 16 anos, já seja mãe e, pior, mãe solteira. A comunidade não vai aceitar uma coisa dessa – arrematou! Dá pra imaginar o sofrimento por que passou a minha filha. Mas ela foi forte. Encarou aquele padre e disse sem medo e com firmeza: - Que pena que o senhor não aceita uma mãe solteira e isso ser vergonha pras autoridades eclesiásticas. Meu nome é Maria, e sei que a Maria, aquela ali (apontando pra imagem de Nossa Senhora), também foi mãe solteira e foi alvo de discriminação no seu tempo. Saiba que com ela não estavam sacerdotes como o senhor, mas estava o próprio Deus, no seu ventre e através do anjo do senhor que acalmava o seu espírito naquele momento tão difícil e incompreendido. Eu também sou Maria, não sou a mãe de Deus, mas sou uma filha de Deus. Fique em paz, seu padre, pois depois que lhe falei isso, sinto que a paz está comigo também.”
Fiquei sem palavras diante daquela menina que me ensinou tudo sobre como reagir diante do preconceito e descobri que Deus está do lado é dos mais pobres, oprimidos, humilhados e excluídos, e que a verdadeira religião é aquela que inclui as pessoas e não aquela que cria regras de exclusão. Voltei feliz pra casa, minha mulher estava cantando Mama África, de Chico César, preparou o almoço, depois cochilamos um pouco e voltamos a ser felizes.