Ruído

É verdade que ela não gostava de gente, nem de muita conversa, nem de visitas. Não era charme. Tem pessoas que fazem manha, fingindo ser artista, precisam de tempo sozinhas, têm idéias estranhas, escrevem tudo o que sentem e buscam sons no que outras pessoas consideram barulho. Aí contam pra todo mundo o modo excêntrico de levar a vida, esperando que quem escuta se interesse profundamente.

Mas ela era assim mesmo. Quieta. Tímida. Tinha seus sonhos particulares, suas birras diárias, seus pensamentos tortos, umas idéias vazias, um hábito irritante de roer as unhas e nenhuma vontade de debater. Ficava feliz em manter sua opinião sobre as coisas pra ela mesma.

Não se pode dizer que seu modo de viver tenha sido uma cicatriz de uma infância infeliz ou de pais relapsos. Era até muito sortuda por ter pais tão preocupados e carinhosos, dispostos a conversar e atender pedidos.

Ninguém tirava dela este sentimento de reclusão e não havia quem fizesse com que ela dissesse a razão de tantas horas passadas sozinha, mas havia um diário. Havia um cadeado e nenhum acesso à chave.

Após alguns anos vivendo assim, Liuja adoeceu e achou que o sono era uma boa maneira de passar sua dor. Entre um cochilo e outro, deixou o diário aberto, com algumas folhas dobradas contra o chão. Sua mãe, na esperança diária de que a filha quisesse comer, estancou à porta quando viu que a vida da filha estava ali, indefesa no chão.

Não era mulher de invadir a privacidade alheia, mas resolveu que naquele caso talvez conseguisse encontrar uma solução para a solidão aguda que acabara atingindo toda sua família. Leu. Releu. Chorou.

"O que eu mais queria era poder escutar o que as pessoas dizem para me ajudar, mas, ironicamente, quem quer na maioria das vezes não alcança."

"Eu acredito na minha vó Maria. Um dia eu vou ouvir de novo, porque tudo foi um acidente. Fiz um voto de silêncio e estou esperando Deus me atender. Ele deve estar cheio de pedidos, porque hoje faz exatamente 3 anos que não falo. Quando Deus falar, será que eu vou ouvir?"

A avó de Liuja tinha contado à ela uma história fabulosa a respeito de como a menina perdera a audição. Disse que tinha sido quando Liuja ainda era criança, embora a garota não encontrasse na memória um som sequer, não reconhecia sequer uma voz, mas imaginava a melodia da avó, transformando em sons agradáveis as palavras que a velhinha escrevia num papel para explicar a história.

A mãe conteve um choro dolorido, mas fechou os olhos para poder sentir todos os cortes daquela revelação. Então era isso? Liuja tinha vivido tanto tempo à luz de uma mentira? E agora, como ela quebraria o encanto? Como destruiria o fio de alegria que mantinha sua filha em conexão com o mundo? Tinha medo de que, se contasse a verdade, ela não tivesse mais motivo para viver e deixaria a realidade por vontade própria.

Quando abriu os olhos, Liuja estava sentada na cama, numa expressão de raiva pela privacidade invadida e de curiosidade. Queria a confirmação da história que sabia.

A mãe entendeu. Escreveu na contra-capa do diário: "Você nasceu assim. Essas coisas não mudam".

Os momentos de silêncio que antecedem a confusão e a frustração são os mais longos. A menina mantinha a mesma expressão neutra, sem piscar os olhos, mirando a nota musical pintada na parede do quarto que durante todo aquele tempo tinha sido seu ninho.

Com os punhos cerrados, gritou como se uma navalha estivesse atravessando os ouvidos. Chorou até não poder mais. Corria pela casa sem achar o que queria. Na verdade, não sabia o que procurava. Foi até o jardim, seguida pela mãe, esta coberta de lágrimas e libertou o grito mais longo, mais alto, mais guardado, mais emotivo, mais cansativo e mais tardio.

Ela notou que os passarinhos que fugiram assustados emitiam sons de alerta pelo ar.

--- Minha filha, eu queria tanto que fosse eu no seu lugar. - disse isso com as costas viradas para a mocinha, caminhando de volta para casa, a voz quase sendo levada pelos passos tristes e pelos passarinhos ainda inquietos.

--- Eu sei...

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