QUASE UM SEGREDO

Conhecia-o pouco, mas a empatia logo estabeleceu-se. O pecaminoso e irresistível aroma da comida que preparava em sua pensão dispensava letreiros na porta. Era um trapalhão. Endividava-se sem a menor noção de como iria pagar aos credores. Era um enorme e desajeitado negro-mulato com feições de baiana-do-acarajé, movido a pulsos e impulsos de um coração lírico. Era louco por samambaias de plástico..........

Jogava búzios e ofereceu-se para naquele final de ano " rezar " nosso apartamento.

Chegou antes da hora marcada, trazendo numa bolsa de super-mercado uma veste, colares,pulseiras, um turbante, anéis, búzios, velas, copos coloridos... Não fosse a demora em retirar cada objeto de dentro dela, poderia compará-lo a um mágico e sua cartola...

Paramentado, assumiu uma entidade africana e pôs-se a proferir palavras num dialeto bonito, entremeado de citações , orações católicas e cânticos repetidos como mantras numa sintonia profana de puro sincretismo...

O aroma do incenso e sua metálica voz negra pendiam no ar causando em mim uma acuidade sensorial comparada ao efeito de drogas que jamais experimentaria... Ao final da empreitada, num tom grave, vasculhando cada canto da sala como se rastreasse algo por fazer, confidenciou-me:

-"Consegui expulsar todos eles"...

-"Quem"? perguntei do alto da minha ignorância.

-"Expulsei todos os espíritos do mal que moravam aqui..."

Preocupada com a revelação, tratei de mudar de endereço. Hoje vivemos num outro apartamento com espíritos bons e maus que se entendem muito bem, são amigos, dividem experiências e "convivem" conosco, já que somos como eles... bons para algumas coisas... terríveis para outras...

E esse meu amigo deve estar de vez em quando aqui conosco... porque tornou-se também apenas um espírito... até hoje lembrado e querido por nós...

(Homenagem ao nosso amigo EDU que se foi tão cedo...)