“Se o passado em mim deixou marcas, talvez seja por isso que hoje os meus passos sejam mais firmes”. (Jr. Gilmour)


I PARTE
EM ALGUM CANTO DA MINHA CASA.


Ouvia muitas histórias de quem jamais quis brincar comigo. Em paredes de madeira, sem pintura e quase sem mobiliário, meu sorriso como fosse uma grande descoberta, transformava-se em retratos preto e branco. Descobri aos poucos que possuía mais sete irmãos e descobri também que diariamente todos tinham limitações no pensar, no falar e no sorrir. Num misto de medo e esperança, todos eram parecidos e todos sobreviveram. As coisas simples que possuíamos, também estavam estampadas em nossas faces, nossas atitudes e poucos, mas sinceros momentos felizes. Enquanto crescia conseguia muitas vezes observar as constantes lágrimas da minha mãe, totalmente desprovida de vaidade e sempre contando os dias para conhecer uma vida melhor. Certa vez cheguei a pensar que eu tinha sete brinquedos, como bonecos tristes, mas nenhum deles pude apanhar em meus braços e consertar cada erro, cada defeito, nem mesmo poder dar vida a eles para andar sobre suas próprias pernas e encontrar o caminho da felicidade. A felicidade para cada um se restringiu às atitudes de liberdade e para a maioria o pouco era o suficiente. Nos cantos vazios de minha casa, observava minha mãe fazer um curto trajeto entre a cozinha e um lugar para sentar, seu olhar sempre foi o retrato colorido da tristeza, se é que ela possui cor, e triste era saber que a noite estava muito próxima e o medo parecia estar chegando junto ao portão. Minhas expectativas para um próximo momento de alegria eram frustradas sempre com notícias de pranto e participávamos como protagonistas de um filme interminável de terror. Minha mãe mais uma vez estava no quarto trancada em prantos e molhada em suas vestes, o desespero deixava ouvir gritos e ameaças e mais uma vez o já então velho guarda-roupas estava novamente quebrado. Talvez, seja por esses motivos que nossos corações tornaram-se fracos e ao invés de sangue, apenas corre lágrimas.

II PARTE
ENCONTRO COM A DECEPÇÃO.
Como eram quilométricas as visitas que minha mãe fazia naquele tempo tendo eu como companhia. De mãos dadas, com calçãozinho listrado e cabelo molhado saia todo feliz e não me importava com a poeira, tão pouco os trancos e barrancos por onde passaria. Em algumas delas havia um ponto de decepção e tristeza. A vontade de visitar meu irmão em sua casa, mas, ele nunca esteve lá nem tão pouco na minha, aliás, nunca ninguém sabia onde ele estava e as poucas vezes que eu o visitei foram em um hospital à beira da morte ou numa cela. Como era difícil crescer, mas aos poucos pude compreender o porquê dos olhos de minha mãe eram quase fechados e de uma cor tão escura, sem brilho e sempre com uma súplica ao piscar, como se todos os caminhos já não mais existissem. Os olhos de minha mãe eram na realidade um resumo de uma história, o desenvolvimento de uma carga que teríamos de carregar junto com as nossas vidas, para daí, darmos um pouco de conforto quando precisasse.

III PARTE
A FELICIDADE ERA CINZA.

Percebi em certo período, que a felicidade mesmo que circunstancial existia naquele meu mundo de detalhes tão baratos. Minhas irmãs Elo e Ina compartilhavam comigo toda a esperança de um epílogo do filme das nossas vidas. Elo. Foi ela quem construiu minha primeira pipa, eu com cinco anos de idade, vendo aquele papel de seda de um verde esperança, com uma cruz de painas e uma cauda de tecido, foi com ela e sua pipa que a liberdade para mim pela primeira vez se mostrou nos céus e parecia estar sob meu domínio. Foi com ela que pude ver como era de um azul tão lindo o que para mim sempre pareceu ser cinza. Pela primeira vez meu sorriso estava voltado para Deus. A partir daí construí meu pequeno palco infantil, onde apresentava meus poucos momentos felizes, conhecendo a vida com figuras em velhos livros ou canções e sorrisos.

IV PARTE
TODOS OS PASSOS DO CAPITÃO.

Ainda criança, meus natais surgiam como em anos bissextos. Eu não compartilhei com papai Noel nenhum momento de alegria, mas pude ver em comerciais de televisão que ele estava lá e eu não pertencia ao seu mundo. Lembro de muitos carrinhos de plásticos e bolachas artesanais com desenhos do velhinho. Um desses carrinhos era verde bem clarinho e outro vermelho. Algum tempo depois, sonhava em possuir um caminhão de brinquedo, mas como não o tinha, construí com um carrinho velho e amarrei um fogão de brinquedo da minha irmã e aquilo tudo representava um caminhão. E de nada reclamávamos, apenas existia o prazer do momento e apenas a esperança de um novo dia para poder fazer tudo aquilo novamente. Mais tarde meu pai me presenteou com um caminhão de madeira com dezoito pneus e mais uma vez, o tão pouco se tornou tudo para a minha vida. Mais uma vez, um momento de alegria somava-se com tantos outros sentimentos para reconstruir um coração que nunca conheceu o tom da sua batida. A sombra do meu pai foi literalmente o meu próprio caminhar. Meu dia-a-dia era observado pela sua disciplina e rigorosidade. Fui ao seu trabalho, brinquei com uma máquina de datilografia e o vi fardado. Tudo em mim era domínio seu, mas mesmo o que às vezes é rígido, vira costume e meu recreio no colégio era sempre motivo de alegria quando ele aparecia. O orgulho em dizer que era o meu pai quem estava ali e corria ao seu encontro beijá-lo, mesmo sabendo que o meu maior medo deixava conciliar com as coisas boas que ele por mim fazia. O tempo passou tão rápido. A saudade ainda aperta quando lembro aquelas manhãs de domingo, quando ao seu lado me deparava na feira do largo da ordem, a praça do relógio como era chamada, escutando e aplaudindo o nosso grupo preferido de chorinho. Aprendi a gostar de música e meu pai começou a se transformar num personagem definitivo na minha história. Mais tarde voltaria naquela mesma praça e pela primeira vez sem ele. Foi ali que pude perceber a importância da sua existência e então coincidentemente tocaram a música que eu mais escutei ao seu lado. Um choro triste que quando já ao iniciar, minhas lágrimas, como chuva de verão começou a escorrer dos meus olhos, assim como ele quando escutava na sua vitrola, chorava pela melodia, talvez até anunciando que um dia também eu iria chorar sem a sua presença. É difícil explicar o que um ser nos faz capaz de transformar todas as dificuldades da vida em pleno entendimento, assim como, a filosofia tenta dar rumo ao acaso.

V PARTE
O SONHO ACABOU.

Enfim, o dia chegou. Recebia a notícia. Mais uma dentre tantas que recebi no portão da casa dos meus pais. Pela primeira vez, meu pai estava desguarnecido e um acidente vascular cerebral conseguiu abalar toda a estrutura da até então construção física inabalável daquele homem. Pela primeira vez me senti totalmente impotente, como também, o quanto ainda precisava lhe dizer coisas que nunca tivera coragem e os acontecimentos jamais deixaram falar. Meu choro nunca fora tão desesperador, quando na UTI, abriu muito pouco seus olhos e apenas uma lágrima caiu. Então, com a voz um tanto rouca e num tom baixo disse a ele:
_ Pai, eu ainda tenho tanto a lhe dizer. Por favor, pai, o senhor nem sabe o quanto eu o amo. Eu acho que nem cresci direito, nem meu entendimento para com a vida está definido sem você. É tão difícil admitir, mas ainda preciso muito de ti. E agora, quem vai ouvir música comigo?
Desci então desconsolado pelas escadas como se as paredes fossem o próprio desespero e o longo caminho para casa se tornaria o verdadeiro caminho para o abismo.
Quatro anos se passaram. Todo o cenário mudou. As ruas onde brinquei já nem sei se mais existem e observo que aos poucos, todos os meus sete irmãos estão novamente em casa. Todos com o relatório final das suas cargas que carregaram por todos esses anos. Nos seus olhares, físicos e ações ou atitudes. Observo também que nem todos possuem a mesma coordenação de outrora, nem ao menos o próprio equilíbrio emocional, mas todos retornaram. A tristeza estampada em cada despedida, mesmo antes de definitivamente alguém partir. Meu pai para mim, apenas quis dizer adeus e não conseguiu. Um adeus silencioso que nunca saiu da sua boca. Apenas seu olhar ainda pouco falava aos cantos esperando o retorno de todos os filhos a casa. Foi o que realmente ele sempre desejou, para definitivamente descansar.
Darío Junior
Enviado por Darío Junior em 10/08/2008
Reeditado em 11/03/2019
Código do texto: T1121169
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