Entorpecido

Os pardais começam a se debaterem nas copas, inquietos, impacientes pela luz que prevêem. Ainda um bafo de álcool habita a brisa fria, é o sorriso dos que não encontraram o caminho de casa, as mais carentes baratas. Meus olhos encantam-se com as infelizes que vendem seu corpo ao preço de uma cerveja. Caminhando com os olhos arrastando no chão, elas não me vêem dentro do ônibus. Pardais acordam o dia, expulsam bêbados e fazem o rio correr. De onde venho?

Quando chegar em casa não quero acordar. Apenas eu e o cobrador dormimos, infelizmente não o motorista nem os pardais. Minha cama não cheira a rosas como eu imagino, não tem corpos além do meu e é fria mesmo no verão. No inverno fico doente, minha cama impregnada, as paredes infiltrando, o mofo degradando os cartazes da parede, meus pulmões ficando pesados e sujos.

Quantas noites passei? Quantas ruas? Queria conhecer menos essas ruas, esses pardais, mas faço parte de tudo isso. Fui eu quem pôs os pardais nas árvores, fui eu quem fez a noite e o mais agudo frio que acompanha a nossa solitude. Sim, apenas eu nesse ônibus que me leva embora. E sempre achei estranha a expressão ‘ir embora’, qual boa hora? Qual hora se me sinto em casa enquanto estou entorpecido pelas ruas?

Minto, não estou sozinho nesse ônibus. Posso sentir muitas pessoas ao meu redor, e não apenas posso senti-las como também quase posso vê-las sorridentes de debaixo das minhas pálpebras, mas não estou disposto a abrir os olhos. E verdade, estou sozinho, como é inevitável ao raiar do dia. Aonde quer que eu vá estarei sozinho, ainda quando chegar em casa estarei sozinho.

Venho de outra noite igual. Dormindo dentro do ônibus, triste não sei por que motivo, cansado além do que posso suportar. Passando por ruas demais, pela rua que eu deveria ficar e que não o faço porque estou dormindo. Muitos devem me conhecer e vão sempre sorrir pra mim no dia seguinte. Poderia ficar aqui para sempre, tocando o vazio e me confundindo com ele, me tornando essa coisa exata que nunca vai amar, nunca vai ser amada e ninguém nunca vai tocar. Subtração.

É dessa forma que começo o dia. Não posso dormir para sempre.

Longe de casa.

Perto de casa.

Acordo e descubro que deveria ter descido há mais de vinte minutos. Rio de mim mesmo, e, em um impulso, peço parada, mesmo sabendo que estou a consideráveis quilômetros de casa e sem nenhum dinheiro no bolso. Se já não tenho medo do escuro, não é o sol que vai me abalar, ele vai sim iluminar meu caminho.

Um cigarro para me acompanhar e sentir inveja dos que ainda estão nos bares. O dia tomou conta de tudo, afasta o frio e me manda embora, em boa hora.

A cidade é mesmo um gigante cujas veias eu habito. Sei que sou apenas outro vírus como tantos, mas o que posso fazer? Não consigo multiplicar-me e desaparecerei com o tempo. É uma fome profunda que me abate e denuncia minha anemia, mesmo afogando nesse mar de sangue, essa irritação adolescente que não abandona as genitálias. Mas não é a cidade que me prende, ela me dá sim liberdade, é a única que faz amor comigo. Minha grande mãe devassa e sem cuidado, esta cidade.

Meus pés realmente não doem enquanto caminho pisando na luz. Não me sobem à cabeça os dias nem as quantas vidas que eu gostaria de ter, nem as quantas que vejo e gostaria de entornar um pouco do meu fel em suas bocas. Agrada-me o torpor.

Agrada-me o torpor, pardais, noites que não terminam, sexo sem orgasmo, coisas sem fim.