O COQUEIRO ANÃO
Bem antes da nascença do mamoeiro, Geraldo trouxera para casa uma muda de coqueiro anão, plantada no fundo do quintal. Dona Anginha o cercara de cuidados especiais, adubando-o periodicamente e acompanhando, de perto, o seu crescimento:
- Olha que beleza! Olha o tamanho das folhas! Não vai tardar e ele frutifica!
Não deu outra. No terceiro ano de plantado ele abria o pedúnculo floral às visitas dos arapuás - que eu catava aos pares e os juntava numa luta que terminava com um dos contendores morto, e o outro, capenga, seguido por um renque de formigas pretas que com ele desapareciam nas trilhas do gramado logo à frente. Não demorara muito, e sob a eterna vigilância de Dona Anginha as flores viraram frutos e os frutos foram arredondando o verde até alcançarem o tamanho ideal para a colheita, quase a tocar o chão.
Coube a retirada do primeiro coco a minha mãe. E ela o fez com estilo. As mãos protegidas por meias, a faca de cortar pão ostentada como um bisturí, a cirurgia rápida e indolor, e o trofeu exposto com indisfarçável orgulho:
- Olha que coco lindo! – e, olhando para mim, de sosláio: - Didinho, você está proibido de tirar coco deste pé!
E, pelo visto, somente eu estava proibido de fazê-lo. No dia seguinte, Marcos retirou dois. Minha mãe, à tardinha, tirou mais um para agradar as visitas. E nada para mim, além do gole rápido do coco primeiro. À noite fiz campana ao coqueiro. Contei os frutos restantes: oito. Vi duas novas bandeiras despontando entre as folhas e o tronco, matutei, ponderei e decidi. Fui à despensa, apanhei um furador de papel, de ponta afiada, dois canudos de plástico deixados na lixeira, conferi a hora das rezas de Dona Anginha e o sono dos irmãos menores, e voltei ao quintal, acocorando-me junto ao cacho de coco. Fiz um furo no primeiro, rente ao talo, introduzi o canudo e lhe bebi toda água, quase sem mais poder. Tapei o orifício, cuidadosamente, com seiva do cajueiro, guardei os canudos no vértice de uma das folhas, lavei o perfurador com sabão e voltei a guardá-lo no mesmo lugar da despensa. Depois fui dormir satisfeito, de barriga cheia e cheio de planos para novas investidas ao coqueiro anão.
Acordei, de manhã, com os lamentos da minha mãe no quintal. Fui até lá. Ela estava exatamente onde pensei. Junto ao coqueiro:
- Olha só, meu filho! O coqueiro está doente! Esse coco está arroxeando no pé!
De fato. O coco da água que eu bebera apresentava um circulo amarronzado junto à haste de sustentação. Olhei a vedação com seiva. Perfeita. Parecia obra da natureza.
- Vou chamar seu Elpídio. Ele conhece de coco e pode cuidar disso melhor que eu – ela terminara a frase já na porta dos fundos, com certeza indo direto ao telefone para pedir o socorro de Seu Elpídio. Não senti medo algum. O serviço fora bem feito.
Quase vizinho nosso, num repente lá estava ele acocorado junto ao coqueiro, analizando, com uma lupa, as alterações ocorridas no coco, catucando com a unha a seiva cerosa e, ao se por de pé, dando o veredito:
- É a broca, comadre Anginha Ela penetra no coco, que resseca pela evaporação da água e cai.
- Tem solução, seu Elpídio?
- Pintar a base do tronco de cal. A broca detesta o branco!
Ri adoidado. Ri tanto que me mijei, chorei e espirrei. Só parei depois do puchão de orelhas:
- Por que estás rindo tanto, seu Divaldo?
- Da broca, mãe. Eu vou ficar aqui sentado, e a broca que passar eu pinto de branco. É melhor do que pintar o coqueiro.
Ninguém riu da minha graça. Mas no retorno do colégio já dei de cara com o coqueiro cintado de branco, parecendo mais uma bailarina, com seus longos braços verdes piruetando ao vento. O coco havia ampliado a cinta marrom que agora lhe chegava pela metade. Ah, broca miserável!
À noite, após a ronda interna, voltei à campana e com os mesmos apetrechos bebi a água de mais um coco. Dessa feita, o último do cacho.
Manhã nascida, o repetido lamento de minha mãe:
- O coco caíu, meu filho! Todo roxinho! E olha o que a broca fez nesse outro!
Fui para a escola com a consciência um tanto pesada e na volta fui direto ao coqueiro. Lá estava a auréola marrom circundando a borda de mais um coco.
E mais outro no dia seguinte, outro mais dois dias depois, até que, numa certa manhã, acordei com o chamamento de Dona Anginha:
- Seu Divaldo!
Tremi nas bases! Toda vez que ela me tratava assim, a cama estava feita e a coisa era sempre feia para o meu lado. Como gado que vai para o abate, fui ao coqueiro. Lá estavam ela, Marcos, Geraldo, e um senhor de ar circunspecto, vestindo uma bata branca, óculos de fundo de garrafa, com um coco emurchedido nas mãos.
Foi minha mãe quem desfiou o libelo, olhando para mim com seus olhos penitenciais:
- O doutor Lauro já descobriu tudo. Não é broca nem coisa nenhuma! É gente! Quem furou esse coco, seu Divaldo?
- Foi o perfurador, mãe.
- Divaldo Milanez, quem tirou a água desse coco?
- Foi o canudo, mãe.
- Divaldo Milanez, pelo amor de Deus, quem foi que bebeu a água desse coco?
- Fui eu, mãe. – não havia como fugir mais à minha culpa, à minha máxima culpa, confessada, forçadamente, diante da minha mãe, de dois irmãos e de um estranho. Agora era aguardar e aguentar as consequências.
Ela me levou pelas orelhas até à sala, onde ampliou o peso dos meus pecados e me fez com ela rezar por eles e por causa deles, encerrando a preleção com um veto ditatorial:
- Divaldo Milanez, de hoje em diante você está proibido de beber água daquele coqueiro. Lembre essa proibição como se fosse a da maçã, que Deus impôs a Adão no paraíso. Agora vá estudar. E no final da semana me apresente o seu boletim. Vou cuidar dele como cuidei do coqueiro.
Para quê ela disse isso? Fiquei com ódio do coqueiro! Com tando ódio que nunca mais lhe bebí a água, nem mais usei seus talos para as pipas de papel. Mas lhe deixei esses versos, gravados no dorso de uma das suas folhas surradas de vento:
" Escasso e baixo coqueiro
que no terreiro definha,
não passa de um fuxiqueiro
que irrita Dona Anginha
De seu pé , coco não tiro.
É fruto fraco, não vinga.
É por isso que eu prefiro
beber água da moringa.
Um dia o Bicho do Mato
vai te lambuzar todinho
e logo após esse fato
vais ficar seco e maninho!”
Três anos após esse fato, o verdejante coqueiro anão de Dona Anginha foi perdendo as folhas, os frutos, e considerado morto pelo Homem de Branco. Sem nenhum motivo plausível, nem considerandos científicos aceitáveis. Apenas ficou maninho, secou e morreu.
Foi moído de remorsos que o vi partir para o monturo, as suas raízes retorcidas me acenando adeus. E do meu adeus eu fiz soneto:
COQUEIRO ANÃO
Coqueiro anão, de folhas verdejantes,
perdoa essa criança que não sabe
explicar por que nasce e como acabe
na natureza as árvores gigantes.
Bicho do mato! Se eu soubesse antes
que um gigante lambendo ele desabe,
jamais me caberia, nem me cabe,
coqueiros pretender agonizantes.
Coqueiro anão, missão de Dona Anginha,
que partiu antes mesmo que partiste,
perdoa dos meus versos a gavinha.
Perdoa essa secura que sentiste
pelo Bicho do Mato, culpa minha,
que fez de mim mais um menino triste...
Odir, de passagem,
07.08.2008