Uma Nova Torre de Babel

A propósito de um texto que remetia ao episódio bíblico

da Arca de Noé, da insatisfação de Deus com os homens

e que dizia que o grande mal da humanidade era a boca

e que se falássemos menos o mundo seria melhor.

SE A EXPLICAÇÃO PARA OS MALES DO MUNDO ESTIVESSE NA BÍBLIA, o que não acredito, e em se aceitando que o mal primeiro é a boca, não é o caso de se lançar a atenção para a Arca de Noé, mas sim para a Torre de Babel.

Sem dificuldades concluiríamos que a culpa é do próprio Deus e de seu indissociável egoísmo e pouco senso de alteridade e liberdade, pois o outro, para Deus, só existe enquanto ser subserviente e afirmador da Sua existência, assim como o tão alardeado livre arbítrio que, maldito seja, só serve pra ferrar e limitar o agir, nunca pra libertar e ampliar.

Portanto, a aceitar que o grande mal da humanidade é a boca, não há que haver arrependimento por parte de Deus, pois foi ele próprio quem resolveu confundir a linguagem quando percebeu que os homens estavam progredindo sem que dele dependesse. Ou seja, os males do mundo se devem a um capricho de Deus.

FELIZMENTE, PREFIRO OS SERES HUMANOS A DEUS. Somos fracos, somos perversos, egoístas também e geralmente machucamos uns aos outros. Mas acredito na humanidade, e acredito sim que a origem dos nossos males esteja na dificuldade de nos comunicarmos, na má qualidade na comunicação e na má eleição e corrupção do que comunicamos.

Não acredito em felicidade solitária e não acredito em sentimentos reprimidos. E tanto a felicidade quanto qualquer outro estado ou sentimento precisará ser compartilhado com maior ou menor brevidade. E não se venha dizer que tal pode ser feito de outras formas, isso é reducionismo direcionado, porque toda forma de comunicação é válida, mas nenhuma exclui a outra, pelo contrário, completam-se.

Até mesmo a forma mais perfeita de comunicação, que é a música, seria desprovida de razão caso inexistisse a linguagem verbal. Isso porque foi o verbo que tornou inteligível as relações e sentimentos que não podiam ser expressos apenas por meios de afeto ou repulsa. Na idade da pedra era porrada ou um sentimento de coletividade que era tão suspeito quanto instável. Ou seja, me desculpem aqueles que acreditam que o mundo seria melhor sem a fala, mas parece bem mais sensato estabelecer-se um diálogo antes de supor alguém amigo ou inimigo.

E, antes que eu esqueça, quero dizer que tudo pode viver em harmonia, inclusive Deus, a música e o verbo. Que o diga Johann Sebastian Bach, que ao longo de toda sua obra, que é por excelência sacra, valeu-se com maestria do verbo, especialmente nas Cantatas. Esse, que é o maior músico de todos os tempos, passados ou futuros, conseguiu reunir todas essas linguagens (que de maneira alguma são dissociadas entre si) e provar que o ser humano pode sim alcançar uma comunicação satisfatória. Talvez, é claro, por ter sido o único ser humano perfeito. Mas continuo a acreditar que há sim muita esperança, inclusive para nós (desculpe-me Kafka), e que, se há um modo de o mundo ser melhor, isso só ocorrerá através da comunicação que leve os homens a construírem uma nova Torre de Babel que não se abale por meros caprichos, humanos ou divinos.