Um Maravilhoso Pôr-do-Sol
E é isso.
É o fim do mundo como o conhecemos. Nada mais importa para quem fugiu e deixou as migalhas de pão para quem quiser seguir.
E assim pensava o Emérito, que não via nada além da própria náusea estonteante e corriqueira do dia-a-dia. Tudo era uma merda sem fim! E ele passava a comer bife com tomate enquanto repousava graças à tardia, porém inestimável, aposentadoria. A casa dele era enorme. Herdou dos pais que antes herdaram dos pais deles que antes haviam roubado de um grupo que falira. Um grupo que financiava a exportação de café... Faliu! Mas quem pensar que Emérito é velho está incrivelmente enganado! Ele só tem quarenta... Nasceu em 19... e não importa mais nada! Nascera no exílio, se dizia made in Romênia. Chegou aqui graças a anistia, porém não tinha nome. Na hora do registro, o pai colocou o nome de Emérito por uma infelicidade. O nome era pra ser Nemo. Até que soa bem!
O jornal estava aberto na primeira página e ele viu o retrato de Eufrásio. Não era ninguém para ele, nem o conhecera pessoalmente. Mas sabia sua procedência: era filho do homem que havia atirado em suas costas e deixou-lhe paralítico. Emérito foi policial federal de alto escalão. Prendia gente graúda e nesse meio havia Ângelo, o pai de Eufrásio. Um dia, quando levava Ângelo para a prisão, este conseguiu sair dos policiais e sacou o revólver de um deles e atirou em Emérito, ele não viu, mas a bala pegou bem na espinha. Era a aposentadoria tardia, pois ele dizia que pelo tanto que serviu a corporação deveria recebê-la com 5 anos de trabalho - ele começou com 26 anos. Isso já faz 2 anos, e as cicatrizes o acompanharão para sempre. O devaneio sumiu, ele viu a reportagem, Eufrásio fora preso por atirar em um vigia de supermercado pois este não queria abrir depois da hora instituída para fechar. Queria comprar uísque. Emérito murmurou algo e sua mulher, Beneditina, ouviu. Perguntou se ele precisava de algo, ele pensou em pedir uma bomba de hidrogênio, mas ficou calado. Sinceramente, o retrato daquele jovem o perturbava.
Eufrásio se levantou e foi para a carceragem. Depois de uma hora de interrogatório, ele confessou que estava bêbado e atirou no vigia. Homicídio Doloso. Logo em seguida vem o advogado, cheio de plumas, entregar um documento que permite que Eufrásio espere o julgamento em liberdade. Foi a pé para casa... Sem chofer dessa vez, seu pai estava preso e sua mãe na Assembléia... é bom ficar só! Ele é filho da deputada mais votada do Estado e o dinheiro rolou solto para que a imprensa se calasse para evitar escândalo. Nada de jornalistas para um simples rapaz que anda a pé pelas ruas vazias numa tarde de sábado. Repórteres estão com a família e amanhã vão assistir Tv ou ir ao parque. Ele espere que a segunda opção seja acatada.
Ele chegou em casa.
A mãe já o aguardava. Expulsou os assessores e foi falar com o filho.
Ela era apenas fogo e enxofre. Desumanizou o próprio filho. Aquilo não era como um carãozinho na quinta série: era uma vida... Nada de
"Por que você fez isso" ou "Pense em você, eu estou preocupada". Ela se preocupava com si mesma, que o filho fosse preso era algo que poderia conviver, desde que ele rejeitasse sua maternidade. "Suje tudo, menos a minha carreira". E cada palavra era um soco no estômago de Eufrásio. Ela discernia suas falhas e o comparava com o pai preso. E falava, falava e falava... As palavras doíam-lhe no peito, a cabeça girava em torno de seu eixo... Translação: em volta de suas falhas tão enfatizadas pela mãe egoísta! Não quer... NÃO QUER MAIS!
E agora? Por que o tapete está com marcas de sangue e partes do cérebro? Por que sua mãe não se levanta? Ela está com os olhos abertos e olha para cima como se estivesse perguntando o que lhe atingira. E agora? E agora?... Já é tarde! Lembra-se: levantou-se, foi até o quarto do pai enquanto sua excelentíssima deputada esbravejava por respeito, pegou a arma com silenciador: uma pistola automática; foi à sala e atirou uma única vez, na testa. Calou-se para sempre... E correu sangue pelo tapete e pernas para a rua.
Quando amanheceu, um homem em uma cadeira de rodas o despertou. Ele estava perto de uma casa grande longe do centro. Especificamente, estava na sarjeta. Eufrásio olhou para o homem que seu pai invalidou com um tiro nas costas, ele parecia bem mais velho do que nas fotos. E Emérito viu um assassino... Que assassino é este? E Eufrásio se ajoelhou e ficou com a cabeça abaixada, encostando-se nos joelhos de Emérito. Ele chorou e o homem na cadeira de rodas apenas o afagou. Matara a mãe... Mas não sentia remorso, só alívio. Emérito lembrou-se dos homens que matou em nome da justiça e da própria vida. Sem remorso. A vida assim ficava parecida com um maravilhoso pôr-do-sol: apesar dos erros durante o dia, ainda que muitos, eles não impediriam de ver o sol se pôr, nem por uma ultima vez. Assim haveria a necessidade de levantar e não cometê-los no dia seguinte, pois ninguém sabe se terminará o dia para ver o pôr-do-sol.
Adotou o garoto e ensinou-lhe a ser melhor. A polícia buscava o paradeiro do assassino da deputada. O filho era o principal suspeito e já haviam expedido uma ordem de prisão. O pegariam, pensava Emérito, só era questão de tempo. Um ano se passara, e as notícias corriam. Ângelo suicidou-se na prisão, Eufrásio estava diferente e Emérito via no garoto o oposto do pai. Ele não era ganancioso ao extremo, era o meio que o fizera assim: pai corrupto e mãe egocêntrica. Emérito lia Rousseau e aceitava a idéia do homem bom e sociedade corruptora... E Eufrásio mudou de ares, agora é outro!
Passaram-se dois, três anos e Eufrásio mudara tudo, até o nome: agora era Dião, estava no curso de Biomedicina e estava morando com Emérito em outro Estado. É errado que, durante muito tempo, alguém ocultasse um assassino? Para Emérito, Eufrásio - agora era Dião - não o era. Se estivesse preso, ele seria pior que o pai; estava órfão e sem instrução. Foi melhor, pensava ele, que estivesse comigo. Nunca se arrependeu de tê-lo adotado e, a cada dia, Dião se mostrava um rapaz melhor. Emérito nunca teve filhos; sua Beneditina, que morrera há um ano, era estéril e sofria de câncer; ele, aleijado. Dião detestava ouvir isso e tentava fazer que Emérito fosse o pai exemplar, ele fazia tudo para reparar o erro de seu pai... Poderia até morrer por ele.
Um telefonema e vários carros saem correndo da delegacia. Os policias se perguntam o que houve: acharam Eufrásio...
À tardinha era algo singular vista da laje da nova casa de Emérito. Dião ficava lá vendo pôr-do-sol, a serra, o movimento diminuindo... O dia ia acabando de forma tranqüila. As pessoas não se importavam em ver o sol, elas estavam cansadas demais e só queriam chegar em casa e rever seus filhos... Sua família. Talvez nem fosse mesmo necessário ver o pôr-do-sol. Talvez isto estivesse dentro de cada um, em forma de um olhar ou gesto. Um amor... Esse sim, seria um maravilhoso pôr-do-sol: saber que o dia termina e que há alguém nos esperando de braços abertos. Tudo seria belo se todos pudessem admitir os erros e admirar o sol no fim do dia. O silêncio acaba... Emérito sobe a rampa que fez para se dirigir à laje. Há policiais lá fora. Era o fim...
O que aconteceu? Emérito está estático... Longe, quase no fim da rua, jazia o corpo morto de Eufrásio. Paramédicos correm para onde ele está, mas não há nada a fazer... Nada! Ele tentou correr, Emérito gritou e ele não parou. Os policiais ameaçaram e ele correu, pulou a janela e ele estava armado, não! Era seu diário que estava por baixo da blusa, Eufrásio só queria segurá-lo para não cair... Era a vida que ele queria segurar para não cair! Entenderam mal e puxaram o gatilho...
Morreu.
Uma semana se passou e Emérito estava na laje vendo o sol se pôr-do-sol, ele segura um retrato de Eufrásio... Pensava em Eufrásio, Beneditina e até em Ângelo. Pensava no filho que nunca teve e na vida que nunca mais iria levar... Todos felizes. Não há motivo para ser feliz, seu coração está batendo estranho. Dói. Um suspiro e o braço sem vida deixa cair o retrato no chão... E logo ali, acima da serra, o céu dava a Emérito as boas vindas.