O menino do banco da frente

Um cheirinho delicioso de café invadiu a sala de estar naquela brilhante manhã, os raios do sol penetravam pelos bordados da cortina que decorava a pequena janela de madeira, as paredes revestidas com papel floral davam um ar romântico ao ambiente onde por sobre uma mesinha de canto podiam-se ver alguns retratos já um tanto amarelados pelo tempo dispostos gentilmente pela toalha bordada em Richelieu.

Com passos suaves e um tanto apressados ela passou pela sala de estar e entrou na cozinha, o confortável casaco de lã realçado por um cachecol vermelho escuro combinavam harmoniosamente com a pele clara e as maçãs do rosto, rosadas devido ao frio, que naquela região era muito intenso.

Tomou café preto e consultou o relógio esquecido em uma parede qualquer da copa: estava atrasada; pegou uma fatia de pão e saiu comendo, ganhou a rua e quase não prestou atenção ao jardim, mas voltou e olhou-o novamente; brincou com um vira-latas que parecia sempre sorrir com vivo interesse ao seu cumprimento, enquanto, pensou ela com penar, não se vê isso em muitos humanos; o ônibus chegando no ponto a fez acordar, acenou com a mão enquanto corria esbaforida desviando dos carros. Enfim conseguiu chegar em tempo, deu bom dia ao motorista que abriu um largo sorriso ao ver o desespero da menina em risco de perder o transporte, — Calma, disse ele mui gentilmente, o que a fez sorrir também.

Pagou e girou a roleta já um tanto enferrujada pelo tempo e pela má conservação, procurou seu lugar “preferido”, sempre o mesmo banco, o segundo do lado do motorista; excentricidade? Não, só mania mesmo, afinal, pensou, quem não tem umas esquisitices vez em quando? O problema seria se houvesse alguém sentado em seu lugar, fato que encarava como pessoal, e simplesmente não conseguia esconder a decepção por isso; houve vezes em que o “ladrão de banco”, como ela o chamava, percebendo, mudava-se de lugar e oferecia o assento, o que ela aceitava de bom grado e sorria no íntimo, triunfante. Sabia que aos olhos alheios seria taxada de infantil, mas isso não a incomodava nem um pouco, ao contrário, era esse mesmo jeito moleca que a tornava interessante. Sentia-se inteiramente livre, os pensamentos leves, e um contentamento constante tomava conta de seu íntimo; parecia completamente auto-suficiente.

Absorta a desenhar qualquer coisa na janela embaçada pelo frio, ao mesmo tempo em que se esforçava para observar os carros passando apressados pela rua, quase não se deu conta quando ele entrou. Olhou de relance, fingindo não prestar atenção; viu quando ele retirou o dinheiro do bolso da calça social para pagar o motorista, e sorriu cordialmente; bonito sorriso, mãos branquinhas segurando alguns livros, apertou os olhos para tentar enxergar os títulos enquanto ele empurrava a roleta, mas sem êxito; ao menos gosta de ler, pensou e sorriu, como se isso fosse indício de bom caráter, abaixou a cabeça esquivando-se no banco.

Ele nem notou a presença dela, tinha o olhar firme e compenetrado, passava a impressão de que nada nem ninguém desviaria sua atenção de seu objetivo, seja ele qual fosse. Escolheu o banco da frente e ajeitou-se colocando os livros sobre as pernas. A essa altura as perguntas fervilhavam na cabeça da menina. De onde seria? Porque nunca o vira antes? Assustou-se ao perceber que o ônibus estava parado no seu ponto, saiu correndo pelo corredor com penar. Parou na porta e olhou-o mais uma vez, continuava imóvel, impassível, contrariada desceu os degraus do ônibus sob os protestos dos passageiros devido à demora.

Caminhou em direção ao prédio onde trabalhava, tudo igual, os mesmos rostos conhecidos, os mesmos assuntos desinteressantes, mas pela primeira vez em anos sentia-se diferente; entrou no escritório, ligou os computadores, preparou o café, e abriu o jornal na página cinco, que trazia o enunciado: “Contos e Versos” onde, duas vezes por semana, encontrava-se com seu escritor preferido; foi um caso de amor a primeira vista, platônico, mas amor: apaixonou-se pelas palavras, nunca o conhecera, e nem tinha essa pretensão.

Engoliu cada palavra tentando afugentar da memória as perguntas que martelavam sua cabeça ...mas era inevitável, não conseguia esquecê-lo: o sorriso, o modo como ajeitou os óculos despretensiosamente, as mãos firmes a segurar os livros, os seus olhos... sussurrou enterrando o queixo nas mãos... — Relatórios! Esbravejou o chefe com a delicadeza de um rinoceronte. Talvez o animal, coitado, fosse mais delicado, pensou mas não disse.

— Em 15 minutos estarão em sua mesa senhor. E correu para a impressora.

Aquele dia arrastou-se enquanto ela consultava o relógio de meia em meia hora, enfim acabou, suspirou aliviada caminhando pela rua escura a caminho de casa, sentia uma leve dor de cabeça e tinha um vazio no estômago, devia ser fome, não comera nada o dia todo, só café preto do escritório, frio e sem graça, mas era vício e não conseguia parar.

* * *

Sete e trinta da manhã, ela não se atrasou, já esperava no ponto quando o ônibus chegou; não sorriu para o motorista, estava com a cabeça cheia demais para pensar em cordialidades; ótimo, ninguém ocupava seu lugar, sentou-se e ficou a esperar; o ônibus estacionou, ela já o tinha visto no ponto antes que o veículo parasse, e o coração começara a bater mais forte; hoje os livros já eram diferentes, ele também não sorriu para o motorista. Escolheu o mesmo banco, em frente ao dela, mas nem a notou novamente; triste, ela ficou a observar o contraste dos cabelos escuros tocando a pele clara da nuca antes de chegar na gola da camisa, acometeu-lhe um desejo insano de tocá-lo, mas conteve-se, sentindo-se extremamente frágil e desprotegida, teve raiva de si mesmo por ter deixado isso acontecer, e não se perdoou; nunca antes alguém ocupara seu pensamento de modo tão constante como ele; teve medo, do que estava sentindo e mais medo ainda por saber que não seria correspondida; ele simplesmente não se importava, parecia ocupado demais para prestar atenção. Desceu do ônibus cabisbaixa e nem percebeu quando ele se virou para vê-la.

Meses se passaram e a mesma angústia tomava conta de seu peito; era doloroso vê-lo toda manhã e fingir desinteresse. Fingir, palavra que não lhe agradava nem um pouco, mas precisava, afinal tinha seu orgulho.

O sol parecia triste naquela manhã, finalmente ela havia desistido, sabia exatamente o que sentia, mas precisava lutar contra, senão iria enlouquecer; já não conseguia mais se concentrar em seus livros, nem no trabalho, tinha perdido a alegria, estava decidida a esquecê-lo para não se machucar mais.

Mudou de banco e sentou-se um tanto desajeitada, mas ficou ali, com os olhos fixos na porta, o ônibus parou, era ele: “o inatingível menino do banco da frente”, pensou com ironia abaixando a cabeça instintivamente, não esperando qualquer reação de sua parte. Enquanto tentava encontrar lugar para as mãos trêmulas e frias, viu quando ele sentou no mesmo banco de sempre.

Estranhou quando no meio do caminho ele se levantou e saiu antes que de costume, mais estranho ainda foi quando ele lhe dirigiu um sincero sorriso, tinha os olhos tristes e parecia não sentir-se bem; a pele mais pálida do que o normal a fez estremecer, seguiu-o com a cabeça enquanto descia do ônibus, parou na porta e olhou-a demoradamente, como que querendo decorar cada traço de seu rosto delicado. Sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha, teve o ímpeto de se levantar para segui-lo, mas, ele desceu antes que ela concretizasse a idéia.

Através da janela embaçada arriscou um acanhado aceno a que ele retribuiu carinhosamente. Sem entender nada, ficou a esperar o dia seguinte, nem conseguiu concentrar-se no trabalho. Mas então teve uma desagradável surpresa: ele não estava no ônibus, talvez tenha mudado de horário, ou de trabalho, ou simplesmente se atrasou, dias se passaram e ele desapareceu, sem lhe dar a chance de ao menos confessar o que sentia, apesar de saber que este sentimento não era recíproco.

O escritório parecia uma prisão naquela chuvosa manhã, abriu o jornal com sofreguidão, fazendo um esforço imenso para não chorar, procurou a página cinco, tentando encontrar algum consolo nas doces palavras de seu escritor predileto; para sua surpresa antes do conto havia uma... homenagem póstuma ao escritor, o que fez seu coração gelar no peito; leu com detida atenção o enunciado em que os redatores agradeciam o jovem escritor que falecera há alguns dias..., pela sua dedicada contribuição cultural ao jornal e um pouco abaixo do elogio vinha estampado o seu último trabalho, um conto intitulado: “A menina do banco de trás”...

Com o coração apertado e já não podendo conter a emoção, engoliu cada palavra, onde ele, da maneira mais plena e sincera, declarava seu amor secreto pela menina do ônibus, e o sofrimento de não poder sequer tentar viver esse amor devido à iminente e inevitável desgraça que estava a lhe sobrevir por causa de uma grave doença: “Sei que ela não me nota, mas está tão perto que se apenas me voltasse a teria e ao mesmo tempo tão longe; se eu pudesse ao menos tocá-la, sentir de perto sua pele, ter suas mãos pequenas e delicadas nas minhas por um instante, valeria uma vida inteira...deveria confessar-me, ao menos tentar; mas seria em vão...se eu tivesse mais tempo...”

Ao terminar de ler uma lágrima rolou pelo seu rosto marcando o final daquele último conto.

Karina Gimenez Volpi

Karina Volpi
Enviado por Karina Volpi em 06/08/2008
Código do texto: T1115648
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