O ESPINAFRE
Como em qualquer lugar deste planeta, nesta nossa progressista paulicéia desvairada também temos os grandes escritórios e seus diversos personagens inseridos nos seus cubículos, com pelo menos um folclore por andar. O que aqui vai ser narrado já não tem mais classificação. Não é mais uma das estórias da vida real, nem é ficção pura. Acredite se quiser.
Num belo e envidraçado edifício, desses chamados inteligentes, no exato décimo andar com exuberante vista da Avenida Paulista, havia uma bela e frondosa secretária de diretoria. Dessas de parar o trânsito, literalmente. Mulher inteligente, dominando homens e idiomas, flanava pelos diversos departamentos sempre deixando no ar um leve perfume francês. Parece lugar comum, mas não é, trata-se de uma modelo de revista. A mulher era realmente especial e admiravelmente feminina nos seus movimentos e trejeitos. Sua voz era de tal maciez que muitas e muitas vezes foi sondada para locutora de rádio.
Uma pessoa assim sempre arrasta atrás de si um séquito de admiradores e pretendentes. E ela não era exceção. Em cada um dos andares pertencentes à empresa, da qual fazia parte, possuía ferrenhos admiradores e defensores. Além da beleza e posturas invejáveis, era inteligente e muito competente.
Se pudéssemos colocar seus admiradores em fila, talvez a mesma chegasse a Santos, apenas para que se tenha uma idéia de seu imenso fã-clube.
Na contabilidade, porém, possuía seu mais absoluto admirador. Joel tinha literalmente um metro e meio, um imenso barrigão de cerveja, nariz torto, careca sebosa e hálito de onça. Mas não se dava por vencido. Mandava flores, bombons, cartões e não perdia uma oportunidade de fazer um galanteio. Foi durante anos motivo de chacota, não só por parte dos colegas, como, principalmente, por parte daquela que arrastava multidões. Joel, no entanto, sabia que o destino lhe tinha reservado algo de inusitado. A cartomante já lhe havia dito isso, pelo menos umas duas vezes. Ganhar na loteria, ter a mulher mais desejada, uma dessas duas coisas. Joel não ligava muito pra dinheiro, mas mulher ele fazia questão de tratar como rainha. Qualquer uma que encontrasse merecia sua atenção. É bem verdade que não tinha nenhuma, mas isto só poderia ser questão de tempo. Sonhou que Nadja seria sua e está sonhado. Sim, Nadja era a maioral. O máximo que um coração pode aguentar. Saberia tratá-la e fazia questão de lhe explicar detalhadamente o futuro de ambos.
Nunca, na verdade, recebera qualquer atenção por parte da moça, sequer esta lhe retribuía os inúmeros cumprimentos. Nem um simples e burocrático sorriso.
Um dia, ah... sempre tem um dia, Nadja entrou na contabilidade e disse, parada à porta, “Joel, pode me acompanhar...”
Joel empalideceu, quase caiu da cadeira, mas foi. Foi como quem levita, foi como quem, agraciado com o Prêmio Nobel, vai fazer o discurso de sua vida. Rapidamente borrifou um hortelã na boca e passou a mão pela cabeça simultâneamente ajeitando o terno, a gravata, a camisa. Ao se aproximar dela, Nadja se curvou e sussurrou em seu ouvido, sob os olhares atentos e atônitos da platéia, a frase que ele esperava faziam meses, anos, séculos até: “Você pode vir a minha casa hoje à noite?” Embasbacado, corado e suando, Joel concordou sem lembrar nenhuma das inúmeras frases decoradas que havia preparado para ocasião semelhante. Ao sentir o hálito e o perfume da mulher amada, tudo a centímetros de seu pescoço, a voz aveludada, arrepiou-se todo e ejaculou. Quase desmaiado, retornou a seus afazeres que, daquele momento em diante não mais progrediram. O resto da tarde foi um desastre.
Joel foi para casa, tomou um banho demorado, borrifou-se todo com uma colônia que comprou na feira do Pacaembú, passou na florista e munido do mais belo arranjo, pôs-se a caminho. Sua cabeça rodava, seus sonhos já tinham dado mil e duas voltas por sobre o globo terrestre. Quase lá, lembrou-se de agradecer a Santo Expedito e entrou na primeira Igreja que viu pondo-se a orar. Agradeceu fervorosamente a graça e fez inúmeras promessas de fidelidade e amor eterno.
Chegando ao endereço que a moça lhe havia dado, aprumou-se todo e com voz empostada fez-se anunciar. Ainda lhe restava uma ponta de dúvida, se não estava sendo motivo de chacota, ou alguma piada de mau gosto. Olhou em volta para ver se não avistava colegas e uma eternidade separou sua chegada da confirmação de que poderia subir. Era verdade. Ele estava para adentrar o castelo de sua amada. Mentalmente gritou da rua para que Rapunzel lhe atirasse as tranças. Subiu e tocou a campainha. Estava tão orgulhoso de si mesmo e da sorte que chegou a crescer alguns centímetros. A empregada pediu para que aguardasse na sala de estar, oferecendo-lhe uma taça de vinho e uma bandeja com deliciosos canapés.
Enquanto esperava e saboreava, pensou em gratificar sua cartomante, talvez com todo o seu décimo terceiro salário daquele ano. Talvez uma jóia, um colar ou mesmo um carro. Aquela mulher devia ser uma santa, mulher de sabedoria e visão de futuro com certeza. Na próxima visita lembrar-se-ia de lhe pedir dicas para a Bolsa de Valores e números da loto.
Nadja apareceu vestida em um robe de chambre, quase transparente, sandálias de salto alto e finas tiras. Parecia pronta para dormir. Chamou-o carinhosamente e pediu que a acompanhasse até o quarto. Um cômodo digno de contos de fadas, cama com dossel, espelhos e velas, tudo levemente perfumado e à meia luz. Joel, abismado e admirado mais uma vez com a sorte, recebeu ordens expressas para se despir completamente e aguardar. Nadja lhe asseverou tratar-se apenas de alguns minutos e ela lá estaria de volta. Mais rápido que um raio, Joel se livrou de todas as suas peças de roupa e ficou ali já em estado de pré tudo. Percebeu que ainda portava as flores. Aproveitou para se imaginar Adão no Paraíso, por coincidência o nome do Bairro em que se encontrava. Neste mundo nada é por acaso. Nada.
Enquanto divagava, percebeu a chegada de sua amada que no entanto não vinha só. Trazia pela mão um menino de seus seis ou sete anos, cara de sono e tédio. Joel, mais do que imediatamente tratou de se tapar com as flores e ouviu: “Olha Pedrinho, olha bem! É assim que você vai ficar se não comer espinafre...”