A Bicicleta

Eu tinha doze anos e queria uma bicicleta. Minha mãe não podia dar. Era uma bicicleta cara.

As lojas Arapuã anunciavam na televisão a bicicleta - que poderia ser paga em vinte quatro prestações. Pedi a minha mãe que comprasse pra mim, que eu pagaria as parcelas vendendo picolés. Ela não topou. Disse que era um risco mexer no já tão enxuto orçamento da casa. Afinal, ela sustentava sozinha quatro filhos; sendo eu o mais velho.

Mas não desisti. Fui visitar minha avó e fiquei vendo televisão com ela. Na hora que passou o comercial, eu fiz a mesma proposta. Mostrei algumas contas argumentando que daria para eu pagar a bicicleta vendendo picolés. Sei que foi golpe baixo. Vó só pensa em agradar. É que eu queria muito aquela bicicleta. No mesmo dia fomos na Arapuã.

Quando minha mãe chegou do Banco, lá estava a bicicleta. Queria desfazer o negócio e brigou com minha avó. Depois viu que não tinha jeito, a coisa estava feita e pronto.

Morávamos no bairro Carlos Prates. Eu comprava os picolés numa fábrica do bairro por quinze centavos e vendia por vinte. Com a bicicleta passei a buscar os picolés na fabrica do bairro vizinho, o Padre Eustáquio, por dez centavos e continuava vendendo por vinte. Aumentei meus lucros. Assim eu pagava as prestações até adiantado.

A bicicleta era de Cross. Uma Calói. O que tinha de melhor na época para a prática do bicicross. Esporte que era febre na época. No pátio do mineirinho construíram uma pista; passei a praticar lá. Ficava a uns dez quilômetros de casa. Mas valia a pena, a pista era ótima.

Eu sempre ia com o Cássio. Meu vizinho e companheiro de cross. Ele tinha uma bicicleta boa. Mas não tanto quanto a minha.

Foi numa dessas tardes que tudo aconteceu. Tinha um garoto de uns dezesseis anos lá na pista. Ele tinha umas ferramentas legais e me ajudou a fazer algumas regulagens na bike. Altura do banco, aperto de corrente, ajuste de freios. Essas coisas. Assim, quando ele pediu pra dar uma volta, eu deixei.

A pista é em ziguezague e em declive. Meus olhos ficaram acompanhando a volta do meu novo amigo. Ele andava bem. Terminou rapidamente o percurso. Só que não voltou pra me devolver a bicicleta, saiu por uma abertura no fim da pista e ganhou mundo.

Eu e o Cássio saímos atrás dele. Mas já era tarde.

Nesse dia cheguei em casa somente à noite. Estava com medo de enfrentar minha mãe. Quando abri a porta ela já estava aflita. Eu contei tudo em prantos. Não ouve bronca.

Minha mãe me levou num posto policial para dar queixa. O que me restou da bicicleta foi aquele boletim de ocorrência, a nota fiscal e o carnê da Arapuã com dezoito parcelas vincendas.

Continuei vendendo os picolés para pagar as prestações. Porém decidi que teria a bicicleta de volta. Passei a ir diariamente na pista do mineirinho - a pé ou de carona (quando conseguia). Não falhei nenhum dia.

As pessoas sempre tentavam me dissuadir daquela empresa, dizendo que a minha bike já teria sido desmontada e as peças vendidas separadamente (isso me deprimia porque eu fantasiava esse esquartejamento). Era realmente o mais provável. Porém alguma coisa me dizia que não. Eu tinha certeza que a encontraria.

Passou pouco mais de dois meses. Era sábado - dia de campeonato de bicicross. Estava lotado lá. Eu me perdia na multidão.

A minha era branca e azul e aquela que eu observava era branca e vermelha. Mas o que eu reconheci na verdade foi o garoto. Com certeza era ele mesmo. Fiquei olhando sem ser visto e percebi que a bicicleta havia sido pintada. Claro, minha bike era novinha, ele teve dó de desmontá-la e achou que pintando resolveria o problema e poderia ficar com ela.

Quando tive a certeza, meu coração bateu forte e tive o impulso de ir até lá e retomá-la. Quase coloquei tudo a perder. Ele era o dobro do meu tamanho, não estava sozinho e certamente ao me aproximar, fugiria como da primeira vez.

Foi aí que vi um policial. E por uma dessas coincidências inexplicáveis, era o mesmo que fizera a ocorrência. Já cheguei com o B.O. na mão e ele se lembrou rapidamente. Pediu-me pra dizer onde estava o garoto e perguntou se eu tinha certeza que era ele mesmo. Eu disse que sim. Ele chamou dois colegas e deu algumas instruções.

Fomos ao encontro do garoto que estava na pista. Ele me reconheceu na presença do policial e fez como no dia do roubo. Completou o percurso rapidamente e saiu pelo final da pista. Só que dessa vez, dois policiais esperavam por ele.

Fomos num posto de gasolina, viramos a bike de cabeça pra baixo e limpamos os números do chassi. Lixaram, mas foi um trabalho mal feito. Com alguma dificuldade os policiais conseguiram confirmar o número com o da nota fiscal em nome da minha vó.

Liguei pra minha mãe que ficou muito surpresa e foi me encontrar na delegacia de menores.

O garoto negou o tempo todo, é claro. Isso só irritou ainda mais os policiais e, enquanto eu dava depoimento ao lado da minha mãe, ouvimos os gritos dele. Me assustei e minha mãe chegou a protestar. Eu não imaginei que bateriam nele.

Minha alegria em recuperar a bicicleta se dissipou. Ouvindo aqueles gritos, tive vontade de voltar atrás, mas já era tarde.

Alguns meses depois troquei a bike por uma guitarra.

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 30/07/2008
Reeditado em 04/04/2015
Código do texto: T1105039
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