Recontos - Introdução e Conto Um: O Retorno

Introdução

Os contos que estão em suas mãos são sobre uma cidadela no leste da Espanha, Recanto de Las Ventanas. A pequenina cidade teve seu marco inicial com o casamento de José La Veiga com Carmem Rosa, que juntos ergueram as primeiras construções que enrugaram a face espanhola da época, isso porque Recanto de Las Ventanas era um refúgio de prostitutas, bruxas, mendigos, ciganos, homossexuais, ladrões, etc.; que fugiam de Napoleão – “O filho da revolução”. José La Veiga, filho de ciganos espanhóis, veio para o Recanto fugido de Madri, sua última moradia, por causa das suas raízes sujas; Carmem era uma simples camponesa do sudoeste espanhol, filha de uma prostituta e de um padre que a entregou a um orfanato, e aos onze anos casou-se com um homem que a adotou e mais tarde o matou, e foragida encontrou refúgio seguro nos braços de um também fugitivo, José, e juntos casaram-se e prosperaram na terra varrida pelos insistentes ventos lestes, nos quais agora passam as histórias narradas a seguir.

Dos oito filhos, só três não vingaram. Pablo, Joana, Maria Lúcia, Marcos e Juanes La Veiga Rosa, sobreviveram e após a morte dos pais assumiram o controle. A família La Veiga Rosa ficou conhecida ao redor como os “benfeitores do novo-mundo”, pois com a progressiva notícia de sua extrema bondade, o Recanto avolumou-se de rejeitados. Tudo correu na mais pura harmonia até meados do século XX, após o ano de 1908 acontecimentos sucessivos arrancou do seio da bondosa família o controle do Recanto: Pablo, um dos cinco irmãos assassinou os dois restantes – Marilu e Marcos - da linhagem La Veiga Rosa, para assumir o poder total, já que a bondosa família também se tornou abastada.

Com sangue em suas mãos ele trouxe para o Recanto uma nova forma de governo: ditatorial. Após onze longos anos de regime, um então desconhecido familiar tomou-lhe o poder: Lucas La Veiga, seu irmão por parte de pai. Após cinco dias de batalha – conhecida mais tarde por A Batalha de Las Ventanas -, seu meio-irmão arrancou-lhe sua vida e assumiu seu lugar. Sol e ar puro pairaram no Recanto durante seu domínio. Casou-se com Otília Ramos, uma mulher muito formosa, e teve com ela três filhos – Maria La Veiga, que mais tarde se casou com seu então tio Daniel La Veiga, Lola La Veiga, que é a protagonista do segundo conto que compõe esta coletânea, e Terezinha La Veiga que é a genitora do protagonista do último conto.

Otília era conhecida pelo seu alto número de amantes, sabem-se mais de quinze, o mais famoso affaire foi o capitão do Recanto, Pedro Silva, que foi morto por Lucas após descoberto sua traição. Otília, apesar dos demais, era carola do catolicismo e mandou construir uma igrejinha no coração da cidade. Caprichosa, mandou reproduzirem uma pintura do gênio espanhol Goya no céu da igreja, todo o serviço foi supervisionado pelo Padre Francisco, vindo de Madri.

A primeira missa foi no dia do aniversário do Recanto. Otília ficou ao lado do Padre durante toda a celebração (dizem que ela tinha uma intimidade com o servidor de Deus).

Lucas morreu aos quarenta e cinco anos vítima de uma emboscada, que dizem as más línguas ser planejada por Otília. Depois da morte trágica Otília perdeu a credibilidade e acrescido da falta de melhorias os cidadãos depuseram a família e ergueram um novo prefeito: Daniel La Veiga (perceba que o poder nunca saiu das mãos dos La Veiga), irmão de Lucas que trazia promessas de um novo-mundo. E após o impeachment, Otília enlouqueceu e sua filha Maria, então primeira-dama, internou-a num sanatório em Madri; morreu dez anos depois da internação. Daniel e Maria tiveram uma única filha, Raimunda.

E aqui é o ponto de partida para as histórias que habitam o Recanto de Las Ventanas.

Conto Um: O Retorno

1958.

O noivo roia suas imundas unhas quando um vulto brancacento sobreveio. A pequenina igreja da enrijecida cidadela Recanto de Las Ventanas abrigava a mínima população, que se via tomada por um assombro, sob um quadro de Goya. A noiva, Raimunda filha do prefeito Daniel La Veiga, esvoaçava sob o tapete avermelhado com um ligeiro volume em seu ventre segurando uma arma de fogo em uma de suas límpidas mãos. Os passos acolchoados se precipitavam para o altar que agora abrigava em seu seio um noivo e um padre boquiabertos e um pai e uma mãe, apreensivos, Raimunda La Veiga cessou seu voar e apontou a arma contra o peito do jovem noivo, Carlos Rosa, que tinha os finos braços apontados para o céu de Goya. A multidão calou e três explosões sucessivas pecaram contra o divino silêncio da casa de Deus. Pombas brancas anunciaram o crime.

Dezembro de 1968.

Um amanhecer rosáceo estampava o céu, o presídio abria seus portões e trouxeram com si um vulto vermelho de nome estranhamente familiar para Juan, que esperava Raimunda de braços abertos.

- Raimunda, que bom vê-la! Tenho tantas coisas para te contar, nem sei por onde começar... – disse Juan, um travesti que tinha presenciado um familiar fato acontecido a dez anos da porta da pequena igreja do Recanto de Las Ventanas.

- Que saudade, Juanzito. Pensei que nunca mais sairia desse inferno. E como vão as coisas por aqui? – disse o vulto vermelho.

- Tudo igual. Continuo dando umas trocadas para sobreviver, você sabe né? Se não fosse por isso não estaria aqui, mas agora vamos embora. Ah! E pare de me chamar de Juanzito, não sou mais aquele rapaz bobo do Recanto. – disse – Vou te levar para conhecer minha casa, e se quiser pode ficar comigo até...

- Voltar para o Recanto? – Raimunda forçou os olhos arrogantes e surpresos – Receio que agora não.

- Então vamos. – disse Juan e pegou a mala improvisada de Raimunda.

A condução desembocou em um estranho e gélido lugar no subúrbio de Madri. Na ponta da esquina viam-se dois seres coloridos, um vermelho e outro cor-de-rosa, ambos loiros.

- E aí Juan? Hoje vai dar pra mim né? – disse um bêbado em frente ao bar La Visita.

- Cale essa boca imunda, Pedro! – esbravejou Juan.

- Quem é essa gracinha aí? Não sabia que gostava disso. – Voltou o bêbado com o mesmo tom sarcástico.

- Não dê moral, Raimunda. – aumentando a voz – Esses vagabundos não sabem o que estão falando! – agora se dirigindo a Raimunda – Vamos por ali. – e apontou uma esquina em frente.

- Você continua o mesmo, Juan! – soltou Raimunda.

- Você que pensa... Por aqui. – Juan parou e apontou um cortiço azul com uma fachada que dizia: “Cortiço Familiar” – Sinta-se à vontade!

O quarto jazia em uma escuridão hostil. A luz sobreveio e o olhar atento de Raimunda se deteve num amontoado de estojos de maquiagem e roupas femininas. Juan colocou os poucos pertences de Raimunda no sofá e foi para o extremo leste do cubículo com a promessa de preparar um mexido de carne para cearem. Raimunda examinava as escandalosas roupas e ligou um velho rádio que já sintonizado transmitia uma música pela metade, que descobriram ser uma canção de Morente.

- Para que todas essas roupas? – interpelou-o Raimunda.

- É necessário viver... – disse Juan, e com um aceno para a mesa encardida sinalizou que a mistura estava pronta.

- Que você acha que devo fazer? – disse Raimunda em meio à comilança.

- Trabalhar comigo.

- Voltar não, ainda – enumerando com os dedos -, ninguém me aceitaria com essa passagem pela polícia e viver aqui sem te ajudar não é justo.

- Trabalhe comigo, posso te encaminhar para uns gringos ricos. – insistiu Juan.

- Parece tentador. Mas, será que suas amigas vão dividir o ponto comigo?

- Claro que sim e conheço a dona de lá, tenho certeza de que ela vai deixar você entrar no nosso seleto clube.

- Não sei se vou ter coragem de dar pra qualquer um. – preocupou-se Raimunda.

- Isso não é problema. A sobrevivência vem em primeiro lugar, você irá se acostumar com o tempo. Veja eu, saí de lá fugida depois de tudo; cheguei aqui com nada e hoje tenho até moradia, simples, mas é melhor que nada!

- Quando começo?

- Hoje mesmo, posso te emprestar uma roupa e maquiagem. Vá se arrumar! – apressou Juan.

O tanque em que se misturavam roupas sujas com louças de mesmo estado recebeu mais uma leva de objetos imundos. Juan desligou o rádio e se virou para examinar Raimunda que acabava de se despir.

- Acho que você deve vestir esse tomara-que-caia deslumbrante. – falou Juan.

- Não, acho muito escandaloso, prefiro esse aqui. – Raimunda apontou para um vestido mais curto preto de lantejoulas mais berrante que o tomara-que-caia. - Posso?

- Claro, pode ser, vou me trocar. – Juan saiu deixando Raimunda se maquiando de frente a um grande caco de vidro que virara espelho improvisado.

Nas bordas do espelho arranjado achava-se colado várias fotos de homens nus, exceto a um pequenino recorte de James Dean vestido. Juan acabava de romper contra a porta, travestido de uma bela loira-quase-ruiva com uma curta saia e uma blusa tão quanto pequena.

- Pronta? – disse Juana, a loira-quase-ruiva para Raimunda.

- Acho que sim. – finalizou Raimunda.

- Então vamos, pegue uma bolsa ali – e Juana apontou para uma gaveta onde se achavam vários penduricalhos.

- Onde você conseguiu isso tudo? – perguntou Raimunda forçando desprezo pela atitude da amiga. E pegando uma bolsa de festa vermelha.

- Consegui emprestado por aí. Agora se já terminou, vamos!

As duas se adiantaram a porta e a luz se apagou.

Dezembro de 1969.

Raimunda já estava a um ano na casa de Juan, ou melhor, Juana. Como a amiga tinha previsto ela já se habituara a vida que levava: a cada noite um novo cliente e metade do dinheiro iam para La Paca, ou mais respeitosamente Paquita – “um traveco desgraçado!”, segundo Juana -; com o tiquetaquear também começou a se picar como Juan, com a desculpa de enfrentar mais uma noite. Numa harmonia quase matrimonial viviam desde a saída da prisão, exceto por algumas discussões com Juan pelo fato de levar os seus “amigos” para dentro da casa. Dormiam na mesma cama, escovavam com a mesma escova, se picavam com a mesma agulha e mesma seringa. A privacidade durante esse período de quase dois anos foi deixada de lado. Na manhã do dia vinte e quatro encontravam-se exaustas na cama, ainda com as roupas sujas da noite anterior.

- Hoje não vou dar para ninguém! – disse Juan.

- Não podemos, Paca disse claramente que devíamos dar para pagar nossa dívida. – murmurou Raimunda, agora La Raia.

- Para o inferno com La Paca! – revoltou Juana.

- Maldito vício! – gritou Raimunda, referindo-se a droga que compravam fiado de Paquita. – receio que não podemos deixar de dar hoje.

- Desgraçada! Infeliz! Puta! – esbravejou Juana.

A pobre ceia se estendia pela mesa: um pequeno peru assado e um vinho barato. Comeram e se levantaram. Raimunda se retirou para se vestir e Juan foi para a cama.

- Vamos você tem que ir. – aconselhou La Raia.

- Não vou e ponto, pode ir! Se você se sente bem em dar hoje, isso é problema seu! Vai embora! – expulsou Juan.

- Então está bem, vou dizer a La Paca que passou mal e não pôde ir, está bem?

Juan não falou nada, estava se picando e rindo melancolicamente. Raimunda saiu e se dirigiu a porta do Cortiço Familiar. As ruas estavam desertas, o salto de seu sapato batia ruidosamente e seu vestido amarelo berrante refletia as luzes natalinas. Na conhecida avenida estava La Paca, um travesti alto moreno de cabelos longos, que trajava uma saia rosa e uma blusa azul.

- Cadê Juana? – berrou La Paca.

- Está passando mal. – explicou La Raia.

- Sei...

- Muito cliente hoje?

- Alguns. Ela não quer dá hoje, mas ela sabe o que acontece com quem não me paga? – ameaçou La Paca.

Raimunda não respondeu. Dirigiu-se a um carro que parou e seguiu com o motorista.

25 de Dezembro de 1969.

La Raia chegou ao amanhecer. Abriu a porta e se deparou com Juan estendido no chão, sem sinal vital. Ao seu lado jaziam várias seringas e papelotes de cocaína. A causa da morte ficou clara: overdose. Pegou sua mala e foi-se embora antes que algum vizinho desconfiasse. Deu um beijo em Juan e saiu, trancando a porta.

1970.

Lia-se na placa: “Recanto de Las Ventanas”. A cidade que Raimunda tentava tanto esquivar se apresentava cada vez mais agressiva. Lágrimas escorriam-lhe pela face borrando a maquiagem de La Raia. Dali avistava a pequenina igreja que anos antes acertara contas com uma pessoa, e que a permitiu conhecer Juana, o único ser que a respeitara e agora jazia no cortiço. Sorria ao pensar como La Paca ficaria irritada ao perceber que tinha perdido duas putas. Chegando a um antigo casarão bateu na porta e uma mulher morena, com os globos oculares afundados atendeu.

- Raimunda! – disse uma senhora de meia-idade, de nome Maria La Veiga, sua mãe.

- Queria falar com a senhora. – murmurou Raimunda em meio a um turbilhão de lágrimas.

- Entre.

Raimunda entrou e se sentou em um sofá.

- Água? – ofereceu sua mãe.

- Não, obrigado. Mãe, por favor, me prometa que irá me escutar sem falar.

- Sim, prometo. - disse Maria com lágrimas brotando-lhe nos olhos.

- Sei que o que fiz há doze anos foi o certo. Fiquei com tanta raiva da senhora, por causa da sua omissão, da falta de pudor e da covardia; só depois de feito percebi que a senhora não sabia nada...

- Fui uma tonta, soube de tudo depois do acontecido, Irene, nossa antiga empregada me contou tudo! – interrompeu Maria.

-... Meu pai... – soluços interromperam o desabafo.

- Abusou de você, não? – completou Maria.

- Sim! – gritou Raimunda, como se quisesse se extirpar de um peso.

- Eu mereci seu desprezo, seu descaso. Fui burra de não ter percebido. Mas, suponho que não terminou de me contar?

- No dia do meu casamento fui disposta a terminar tudo, me vingar daquele homem que se intitulava meu pai! - Raimunda despejou saliva ao falar.

- Não tinha a perdoado até saber de tudo... – disse pesarosa Maria.

- Então peguei a arma dele aqui em casa e desferi-lhe três tiros... – Raimunda abaixou a cabeça – e depois a senhora já sabe...

- Filha, mas você não estava grávida quando foi se casar? – disse em meio ao choro.

- Estava, mas abortei na prisão. E vivi com Juan em Madri, a senhora se lembra dele?

- Sim, e como ele está? Todos pensaram que vocês estavam juntos nisso... Estavam?

- Sim. Juan sabia de tudo, mas ficou fora da igreja naquele dia para me esperar para fugirmos juntos. E acabou não dando certo... – lágrimas brotaram nos olhos de Raimunda ao relembrar o amigo e seu triste fim. – E Carlos?

- Da última vez que o vi, tinha se casado com uma bela moçoila.

Maria La Veiga assuou o nariz e limpou a face e olhou para a filha.

- Filha? – disse calmamente a mãe.

- O que mamãe? Pode falar. – Raimunda pousou a cabeça no colo de sua mãe.

- Sabe... Fiz um exame e descobriram que eu tenho uma doença incurável – assentiu a mãe – câncer.

Raimunda se levantou e olhou para a mãe.

- Mamãe não se preocupe.

-Não me preocupo filha, eu estou com você.

- Vou cuidar da senhora até o fim. – disse Raimunda com um leve sorriso abraçando a mãe, e indo em direção a prateleira para pegar uns remédios.

Pela janela via-se um lindo pôr-do-sol que levava com ele, uma antiga existência.

1958.

Os sinos clericais não tiniram naquela tarde. As pombas que tinham levantado vôo anunciativo contornaram e se firmaram ante a escadaria da mínima igreja do Recanto de Las Ventanas. Os pios dos pássaros eram abafados por gritos e murmúrios assustados de pessoas, vindos de dentro da igrejinha. Um rapaz não muito alto aguardava do lado de fora com os dedos tocando os lábios – apreensivo. Sob Goya e sobre o tapete avermelhado, um pouco antes do altar-mor, encontrava-se uma noiva em pé debulhando-se em lágrimas e desespero, um noivo em estado de choque e o pai da noiva, Daniel La Veiga, estendido sob a face de Jesus Cristo - morto. Percebendo que o plano falhara o rapaz virou-se e rumou para o leste em sua gasta motocicleta.