O Labirinto III

Como não tenho passado, meus colegas de rua estão sempre criando um pra mim. Sobre a perna tesa já existe uma teoria unânime e irrefutável. "Foi pegando traseira de ônibus quando era menino. Caiu e a roda passou sobre a perna dele". Sei que não é verdade. Primeiramente minha perna não foi esmagada, continua roliça como sempre foi. Sei que alguns ossos foram quebrados e pela enorme cicatriz, que atravessa meu joelho na vertical, acredito que passei por uma intervenção cirúrgica mal sucedida.

Quanto às profissões que tive quando era "normal", já não existe tanto consenso. "Ele era advogado. Vê como fica dizendo o que é certo e o que é errado. Tomou chifre da mulher, caiu na bebida e ficou doido". Ou: "era empresário, perdeu tudo e despirocou". Também: "era médico, mas usou muita droga".

Em geral me respeitam e já não tentam tomar meu ponto. Sabem que gosto de ficar sozinho e que sou de pouca conversa. Marisa é a única que não desiste do meu passado.

- É impossível que você não tenha ninguém.

Fico calado olhando o tabuleiro.

- Sei lá, algum parente, em alguma outra cidade.

Parou de repente como se tivesse feito uma grande descoberta.

- Só pode ser isso! Seus parentes devem ser de outro lugar e como você perdeu a memória, não sabe onde é.

Lancei-lhe meu olhar de: "cê tá viajando".

- Não acredito que você sempre foi sozinho nesse mundo. Sei lá, deve ter amado e ter sido amado...

Ela percebeu meu abatimento.

- Quê que foi?

- Não sei - falei olhando pra frente - essa palavra não me agrada.

- Amor?

- É.

- Mas como? - amor é muito bom. Quer dizer, quase sempre é.

- Amor é dor. Respondi de cabeça baixa.

Resolvi admitir dois meninos no meu ponto. Entretanto estabeleci regras. Como na minha rua ficam três fileiras de carros, eu fiquei com a da direita e deixei as outras duas pra eles. Na da direita os carros andam mais devagar e os motoristas costumam estar mais calmos.

- Vocês não podem colocar balas do meu lado de jeito nenhum, mesmo se eu não estiver aqui – entenderam?

Consentiram com a cabeça e com olhos medrosos.

Minha renda caiu um pouco. Mas isso não importa. Estava até bom, afinal solidão também cansa.

Tentaram me dizer seus nomes, mas ignorei. Um eu chamo de Saporã, porque tem o beiço inferior espichado. O outro eu chamo de Verdulino; por causa do catarro verde sempre entre a boca e o nariz. E também porque é vesgo feito o Lampião.

- Verdulino! - vem cá.

O menino arrasta os passos. Teme que eu o xingue.

- Quê que se faz com o dinheiro que cê ganha aqui?

- Dou pra minha mãe seu Manquinho.

- Manquinho é a puta que o pariu.

- Desculpe seu Manquinho. É... , quer dizer...

- Deixa pra lá peste.

- Sua mãe trabalha?

- Trabalha não senhor.

- Quantos irmãos você tem?

- Tinha cinco, um morreu filhote ainda.

- Filhote é de bicho seu excomungado, é criança ou bebê.

O menino fica em silêncio de cabeça baixa.

- E seu pai?

- Conheço não senhor.

- Sua mãe bebe?

- Bebe sim, eu busco pinga pra ela no bar do seu Lúcio.

- Quando bebe ela te bate?

O menino olha para os pés, puxa o ar pelo nariz e pega uma lágrima com o indicador.

- As vezes.

- Ela tem homem?

- Tem sim.

- Bebe com ela?

- Bebe sim.

- Te bate também?

Dessa vez são muitas lágrimas e ele tem que usar as costas da mão. Faço um gesto indicando que ele já pode ir.

Ê bosta de vida.

Gosto de ficar andando pela cidade. Andar me acalma. Muitas vezes exagero e já alta noite não tenho como voltar pro centro. Daí arrumo algum lugar pra dormir.

Geralmente faço isso quando estou deprimido. O Natal é minha data predileta para encarnar esse estado. Foi por isso que naquele final de ano eu estava andando de madrugada pela avenida Amazonas rumo a Contagem quando, de madrugada, peguei uma rua paralela e deitei num meio fio junto a um portão.

Antes que o sono vencesse o desconforto daquele chão frio, um carro parou logo ali na minha esquina. O farol me incomodava e eu fiquei esperando que ele seguisse. Não seguiu. Me levantei e vi o motorista desacordado com a cabeça grudada no volante.

Cheguei perto. A janela estava aberta. Sacudi o homem. Balbuciou. Estava mamado. Pelo menos não estava morto. Era um bêbado amador. Tinha cara de pai de família bem sucedido. Os óculos escorregavam do seu rosto.

Primeiro tentei falar com ele. Nada. Depois desgrudei seu rosto do volante. Ficou mirando o teto do carro. Ajeitei seus óculos.

- Ei, acorda aí, você não pode dormir aqui?

Repeti isso umas três vezes; cada vez mais alto. Ele finalmente me olhou. Expressou um sorriso mais idiota que o meu.

Notei que o carro era novo. Os bancos ainda estavam com plásticos.

Depois de algum tempo, começou a se reanimar. Mas ainda estava muito mau.

- Escuta amigo, se você ficar aqui, vão roubar sua carteira e seu carro novo.

Aquela mensagem penetrava lentamente no seu cérebro.

- Onde é que eu tô? - falou com dificuldade.

- Não sei direito, só sei que tá perto da Avenida Amazonas. Você tem que pedir alguém pra te buscar.

Olhou-me. Por sua expressão, imaginei que ele pensou estar sonhando. Depois de um tempo esboçou medo.

- Não tô aqui pra te assaltar não, mas se você não der um jeito de acordar e chamar alguém, é isso que alguém vai fazer.

Com um tremendo esforço ele colocou a mão na chave e tentou ligar o carro. Imediatamente eu a tirei da ignição. Ele me olhou assustado.

- Me dá a chave!

- Você não tem condições de dirigir, tem que chamar alguém da sua família.

Ficou indignado, mas não tinha forças pra protestar. Ainda tentou.

- Me dá a chave que eu vou embora.

- É como eu disse, você não tem condições de dirigir. Pode causar um acidente.

- Isso é problema meu, e você não passa de um mendigo.

- Pera lá, não sou mendigo não, nunca pedi esmola, sou vendedor de bala de semáforo e além do mais, quem está em desvantagem aqui é você. Se eu for embora, vão te depenar.

- Me dá a chave e pode ir.

- Pra que? Pra você andar dois quarteirões, bater num outro carro e matar alguém. Talvez até uma família. Talvez até crianças.

Ele ficou me olhando admirado. Baixou a cabeça e começou a chorar. Dei um tempo e falei:

- Vamos lá amigo, me diz como chamar alguém da sua família.

- Eles não podem me ver assim - disse entre lágrimas.

- Já fez a merda, agora não tem jeito. Vai ter que encarar.

Ele ainda ficou com o rosto no volante por um tempo. Depois se virou:

- Tenho um celular, deve estar por aqui. Tem o número lá de casa.

Encontrei o aparelho no assoalho do carro.

- Não sei mexer nisso aqui não.

Ele apertou alguns botões e me devolveu:

- Tá chamando, minha filha deve atender.

- Alo, pai!

- Seu pai tá aqui comigo.

- Quem tá falando?

- Olha menina, seu pai tá precisando de ajuda.

- Mas quem está falando? Quê que aconteceu com meu pai.

- Ele está bem. Só que não tem condições de dirigir. Alguém tem que vir buscá-lo.

Tive que olhar nas placas para dar o endereço. Uns vinte minutos depois chega um carro. O homem cai em prantos. Descem duas garotas, com certeza irmãs, uma parecendo ter uns dezesseis e a outra uns vinte anos. Desce também um rapaz. que dirigia. A mais velha se aproxima:

- Você que ligou?

- Foi sim.

Entrego o celular e as chaves do carro. Ela observa o pai em prantos.

- Mas o quê que aconteceu pai?

Ele não para de chorar.

Ela dá um tempo, depois se volta pra irmã e para o rapaz. Deve ser seu namorado ou noivo.

- Eu vou levar o carro.

Ainda ouço o rapaz sugerindo que ela confira a carteira do pai. Ela o repreende.

- Se ele quisesse roubar, não nos chamaria.

Se aproxima:

- Muito obrigado viu moço, nós já estávamos aflitos. Ele não tem o costume de beber.

- É, eu percebi.

Ela tentou me dar um dinheiro. Não aceitei. Foram embora.

Marisa quer saber porque o taxista não quer levar o Preto Véio, um dos pedintes mais antigos da igreja São José.

- Porque ele mija no carro.

O Preto Véio chega às seis horas da manhã na esquina da Tamoios com Rio de Janeiro e só sai depois das oito da noite. Nesse ínterim ele não caga e nem mija. Por isso quando entra no táxi, acaba não agüentando. Ele oferece bastante dinheiro para os taxistas, mas a maioria não topa. Já está com mais de setenta anos.

- Mas por que ele fica esse tempo todo?

- Porque tem que sustentar os parentes. São dezoito

nas suas costas.

- Ele mantém a casa sozinho?

- Isso mesmo, só ele trabalha. Todos dependem do dinheiro que ele arrecada aqui; filhos, noras, genros, irmãos e seus respectivos catarrentos. Moram numa casa de dois andares no Concórdia.

- Mas que exploração. Ainda mais com essa enorme ferida na perna.

- É justamente a ferida sua fonte de renda, os parentes cuidam para que ela não se feche.

- Que horror!

Marisa fica olhando o drama do velho pra conseguir ir

embora pra casa, Os parentes não se preocupam nem em buscar sua galinha dos ovos de ouro.

Uma senhora que acaba de sair da igreja entrega uma gorda nota ao velho e lhe lança um sorriso de quem o está salvando. Ela deve depositar seus pecados naquela nota. Tipo aquele bode da bíblia. O Preto Véio recebe a nota sem retribuir o sorriso – como é de costume. Àquela hora ele já está muito cansado.

Marisa observa a cena. Deve estar pensando o mesmo que eu: aquele dinheiro só aumenta a desgraça do velho.

Dessa vez a mulher sem rosto conseguiu me decapitar. Ficou com minha cabeça um tempo na boca e depois cuspiu. Ela rolou toda babada. Olhei meu corpo andando à esmo e agitando os braços – desejei ter minhas mãos para limpar aquela baba no rosto. Minha esperança era a de que meu corpo encontrasse minha cabeça e a colocasse no lugar; mas acordei antes disso. Como eu estava dormindo na alameda Ezequiel Dias com avenida dos Andradas, acordei junto ao muro do arrudas – devo ter atravessado a avenida rolando.

Marisa percebeu as escoriações e fez perguntas. Não consigo mentir pra ela. Foi a primeira vez que lhe falei da mulher sem rosto. Eu estava assustado.

- Você tem ora que parece uma criança.

Eu dobro os joelhos e coço as feridas. Ela se enternece ainda mais. Não consigo conter as lágrimas. Estou me sentindo muito mau. Tenho náuseas. Ela alterna preocupação com curiosidade.

- Você sempre tem pesadelos com essa mulher?

Faço um gesto concordando.

- E nunca vê o rosto dela?

Repito o gesto.

- Tem alguma idéia de quem seja? Alguém do seu passado?

Fico ainda mais perturbado e minha cabeça dói. Lágrimas escorrem em abundância. Marisa fica preocupada.

- Não fica assim, a gente não fala mais nisso tá?

Não tenho grande apreço pelos meus colegas de rua. Boa parte deles são falsos. Estão nas ruas só pra pedir esmola. Não querem trabalhar. Esses tem residência fixa. Como o Preto Véio. Mas é claro que existem os malucos originais. Tenho uma grande afinidade pelo Tonhão (um dos inúmeros nomes que ele recebe). Primeiramente porque ele quase não fala e depois porque não perturba ninguém. Sua figura é extraordinária. Uma enorme bola preta metida num pano tipo fio dental. Parece um lutador de sumô – só que negro. Mas ele anda tão sujo que não da pra saber se seu pretume é da raça ou de encardido. Tonhão tem uma fixação pelo complexo de viadutos da Lagoinha. Tá sempre por lá entre os carros. Milagrosamente nunca se teve notícias dele ter sido atropelado alguma vez. Especula-se que perdeu a família num acidente de carro na região. Mulher e dois filhos. Mas ninguém é louco de perguntar pra ele.

Outro mistério acerca dele é o fato de ninguém jamais o ter visto comendo. Eu, até hoje, só o vi tomar uma pequena média de café. De que serão feitos seus prováveis duzentos quilos?

As vezes encontro o Tonhão próximo do restaurante

popular; mas nunca na hora do almoço. Ficamos andando lado a lado sem dizer palavra. Quando chegamos debaixo dos viadutos, vou embora. É como se eu o acompanhasse até sua casa. Esses parcos passeios me deram moral nas ruas. Já que ele é muito temido.

Será quantos anos tem o Tonhão? Olhando-o de perto não se chega a resultado melhor. É uma incógnita. Poderia ter tanto vinte como duzentos. As vezes penso que ele não é mais humano. talvez tenha evoluído.

Verdulino sumiu uns tempos, voltou todo moído.

- Quê que aconteceu com cê peste?

- Os zomi seu manquinho.

- Te deram porrada? Por que?

- Porque eu não quis roubar pra eles. Me levaram por vadiagem pra delegacia de menores. Eu tava dormindo na rua. Lá eles escolhem uns meninos de madrugada, levam e trazem pela manhã. Uma vez fui escolhido. Queriam que a gente arrombasse as portas do comércio e quebrasse as vitrines pra roubar. Eu não quis. Me desceram o pau.

- Por que você foi dormir na rua menino?

- Cansei de ver minha mãe apanhar.

- Como você saiu de lá?

- Fugi, é fácil.

- O fácil vicia menino, tome cuidado. Quando for dormir na rua me avise, eu te digo onde é seguro. Polícia nessa cidade só serve pra bater em bêbado na rodoviária e recolher menino pra roubar pra eles. Agora vai na farmácia do seu Lobato, lá na Oiapoque e pede a ele pra fazer um curativo nesses machucados. Fala que fui eu que mandei e que depois passo lá pra acertar com ele.

Seu Lobato é um velhinho muito bacana. Gosta dos doidos. Conhece os verdadeiros. Já até adotou um uma vez, o Pagulogo; que sumiu ou morreu à muito tempo. Ele não faz muitas perguntas. Pena que ele não jogue xadrez. Só dama. Não gosto muito de dama. Mas jogo com ele. Me conta algumas histórias do amigo alienado – muito boas; principalmente as que envolvem as putas da Guaicurus. Pagulogo teve até filho com uma delas – que o seu Lobato criou.

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 29/07/2008
Reeditado em 07/03/2013
Código do texto: T1102586
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