O Labirinto II
Chegou o inverno. Tem vantagens e desvantagens. A principal vantagem é que fico mais tempo sem precisar tomar banho na rodoviária. Meu aspecto não é bom, mas detesto sujeira.
Meu apetite melhora e chego a limpar o prato no restaurante popular. Adoro o restaurante. Não pela comida, que não é lá grande coisa. Mas é que do lado de fora tem jornais, livros e revistas. É o único lugar que consigo ler sem que fiquem me olhando desconfiados. Eu poderia ficar sentado lá à tarde toda. Só não faço isso porque tenho que voltar pro meu ponto.
Mas as desvantagens superam. O frio, de madrugada, é cortante. Marisa me deu um colchonete e roupas velhas do marido. Sobram em mim. Fiz um muxoxo de ciúme mas aceitei. Sou doido mas não sou bobo. Já vi muita gente literalmente morrer de frio. Inclusive crianças - o que é mais triste.
- Não entendo porque você não dorme no albergue, já falei que arranjo pra você.
- Detesto o albergue, eles roubam a gente.
- Você não tem quase nada.
Se arrependeu logo. Mulher fala antes de pensar. Fui recompensado com o cafuné.
- Tenho as coisas que você me deu - falei com aquela cara de retardo pra deixar ela ainda mais perturbada. Ela ficou. Eu sou mau, muito mau.
Baixou a cabeça como eu costumo fazer.
- É que eu fico preocupada com você nesse frio da madrugada, dormindo na rua.
Fiquei apertado dessa vez. Fui realmente muito mau.
- Eu gosto de ficar sozinho - tentei consertar.
- Quer que eu vá embora?
Xiii, hoje não estou acertando uma. Burro! burro! burro!.
- Não, claro que não. É que eu não gosto muito de gente. Quer dizer, eu gosto de você.
Marisa não é como a mulher sem rosto que quer me decapitar com os dentes. Também vejo os dentes dela. São pequenos e branquinhos - atrás de finos lábios. Inofensivos.
Um dia ela me deu um beijo no rosto depois de uma conversa sobre poesia. Corei, chorei e saí correndo (sair correndo foi figurativo - arrastei minha perna um pouco mais rápido). Acho que por causa disso, a cena nunca mais se repetiu.
Marisa deve imaginar que eu não percebo que ela fica preocupada com o fato de que estou, a cada dia que passa, mais apaixonando por ela. Deve pensar que isso não é bom pra minha lesada cabeça. Finjo que não percebo e procuro me conter para não espantá-la.
Agora, o que ela não sabe, é que também está se apaixonando por mim. Mas de que vale eu saber disso? É como um ancião ter certeza que poderia, na sua juventude, ter superado o recorde mundial dos cem metros rasos. Inútil.
Fome. Já passei fome sim. Deixa a gente mais tonto que cachaça.
Uma vez, a algum tempo atrás, achei que a fome poderia me matar. Me arrastei pro parque municipal. Foi o melhor local que me ocorreu pra morrer.
O parque estava vazio naquela tarde de terça feira. Ainda consegui me despedir do busto da Anita Garibaldi - uma velha paixão platônica.
Cheguei no bambuzal sem ser notado. Deitei lá dentro e fiquei esperando a morte chegar com meu sorriso perene de idiota. Eu olhava pra cima e aquelas varas de bambus se transformaram em edifícios. As pessoas riam de mim debruçadas em suas janelas; alguns rostos supostamente conhecidos. E a mulher sem rosto também. Essa tinha a gargalhada mais alta e estridente. Eu estava num estado de calma que só a inanição poderia fornecer.
Parecia tudo pronto e eu já imaginava estar ouvindo os sinos. Mas o que escutei mesmo foi o chiado de algo rastejando perto da minha cabeça. Era uma cobra - acho que verde. Ficou me olhando e fazendo lingüinha. Contornava minha cabeça como uma enseada contorna uma casa. Parecendo me examinar. Como se fosse um médico pronto a dar o diagnóstico fatal.
Não estava nos meus planos morrer picado por uma cobra. É muito humilhante. Ela também não parecia achar muita graça em mim. Logo vi que o problema era invasão de domicílio. Como aquele susto me reanimou um pouco, encontrei forças pra me retirar da residência da cobra verde. Ela acompanhou minha saída com seus minúsculos olhos.
Então desisti de morrer. Estava dando muito trabalho. Foi aí que mexi no lixo pela primeira vez. Um pedaço de pão de queijo mordido: desceu. Uma pequena fatia de mortadela: cheirei; não desceu. Um coco verde com um canudinho. Tinha um restinho daquela água milagrosa. Foi beber e melhorar um pouco.
Com muito custo, o homem da lanchonete abriu o coco pra mim. Comi todo aquele creme branco. Fui salvo pelo coco.
Acredito que existam outras pessoas boas neste mundo além da minha assistente social, a Marisa. Só que a caridade dessas pessoas funcionam em datas específicas. Principalmente no Natal. Os miseráveis, como nós, loucos ou não, quase morrem de fome durante todo o ano. Mas no Natal se morre é de indigestão.
Penso que se toda comida que nos é doada durante essa data fosse dividida durante o ano, muitos de nós - principalmente as crianças - deixariam de morrer. Mas também não sei se isso é alguma vantagem.
Certa vez chegou um homem de gravata na escadaria da igreja São José e anunciou que nos levaria para uma churrascaria, onde poderíamos comer a vontade as melhores carnes. Ouve um alvoroço e quase todos os indigentes que ali estavam se precipitaram para o ônibus que nos levaria ao tal banquete. Pernetas, vagabundos, mulheres com seus filhos de colo, infelizes com feridas expostas - que são a atração para a esmola. Enfim, toda sorte de miseráveis se espremeram naquela condução.
Eu não fui. Primeiro porque não confio em homens de gravata. Segundo porque queria saber o real motivo daquela oferta. E por último, eu havia parado de comer carne havia alguns meses.
Fiquei espiando. Era um casamento com toda pompa e circunstância possíveis. Me aproximei um pouco mais para constatar que aquele ofertante entregava sua filha no altar.
No dia seguinte confirmei no jornal a notícia do matrimônio da filha do deputado que havia cismado de se casar na igreja São José. Como nem a polícia e nem a prefeitura quiseram se comprometer a tirar os miseráveis dali, a churrascaria foi a solução.
Falei para alguns sobre os reais motivos daquele ágape repentino. Mas não quiseram me ouvir. Estavam extasiados com a noite passada. Muito felizes mesmo - e agradecidos.