A CAIXA ABERTA

O menino aparecia e sumia. Esta situação cravava no tempo a marca da identidade sem igual. Era bom ser assim. Como ouvir Mercedes Sosa, enquanto o óbvio toca por aí. Este vaivém do menino transformava os dias em espera. Não a espera angustiada do ser impossível. Qualquer dia, sem mais nem menos, ele estaria parado do outro lado da rua, feito gato em romances meus.

O menino mágico tinha a doçura de nada esquecer. Mesmo ausente, mantinha cor, forma e cheiro pela casa vazia. Muitas coisas ele apagou. Ou não quis lembrar. Abri, sem querer, uma caixinha de lembranças e, agora, algo insiste em não ser tão ruim. Como esta frase de uma canção à qual ouvi tantas vezes e nem sei qual é.

Nossas idas aos lugares mais inusitados estão vivas e respiram absolutas. Nas dunas de Itapuã, hoje quase desaparecidas; nas praias tão lindas da vazia Itaparica à época; no passar da chuva num forte abandonado no Monte Serrat. Lembranças quase perfeitas ou perfeitas apenas. E, em meio às cervejas, os finais de tarde olhando o pôr-do-sol na varanda do Mercado Modelo. E nossa música sempre a tocar. Como agora.

E o menino sumiu na segunda-feira de hoje. Assim como em tantos outros dias, semanas, meses, anos... Brincadeira de esconde-esconde. Partida de dominó. Longas sessões de adivinhações com os olhos afiados na presteza dos acertos. E este desejo sempre achado. A voz sussurrada pelos fios. A comunicação pausada entre reticências e alterações inesperadas dos nossos estados de estar ou de humor.

Revendo os últimos onze dias, reabrindo as caixas guardadas e as deixadas na memória, o menino rasgou a monotonia como um raio. E, como um raio, não marcou hora para retornar. Mas está sempre voltando, sempre dizendo o que quer, pode ou não. E enfeita todos os cantos da casa quando se coloca embaixo da mesa, local tão raro quanto o seu próprio riso.

Transmutado em homem, me arranca a razão. Penso em não pensar, mas não consigo. Então, lá vem uma foto. Uma forma de ficar pausado na minha pasta de imagens. Não dá. Pego a foto como quem coloca uma criança no colo e começo a brincar tornando o reencontro cada vez mais possível. Minha alma abraça toda a emoção de poder falar sobre quem éramos e quem somos agora. E não sabemos de mais nada. Apenas nos deixamos puxar pelas nuvens num tapete de palavras que – ditas pelo menino – têm a capacidade de nos emprestar asas.

Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 21/07/2008
Reeditado em 24/07/2008
Código do texto: T1090988
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