Caveira Vagabunda
Eu era a primeira. E a única. Era a única criança em casa e, por isso, não tinha grandes diversões nem fazia grandes travessuras, afinal de contas, ficava a maior parte do tempo brincando sozinha com as minhas bonecas. Sabe, aquilo era muito chato...
Brincar de bonecas não era o meu forte, o que eu mais gostava mesmo era ir à casa da minha avó para brincar com as minhas primas. Quando ainda bem pequeninas, brincávamos de passear no bosque enquanto o seu lobo não chegava. Cantávamos no bosque até sentirmos o cheiro delicioso de rosquinhas que vinha da cozinha de vovó. Ah, que brincadeira inocente... Deixávamos o lobo imaginário no quintal e logo o esquecíamos.
À medida que o tempo foi passando, as brincadeiras passaram a acontecer na rua. Menos inocentes, era um momento de descobertas reais da vida. A morte era uma delas. É por causa disso que tudo aconteceu...
-Chiquinha, olha só a música que nós acabamos de aprender. - disse a minha prima. Você não quer cantar e brincar com a gente?
-Mas é claro que sim!!! - respondi sem hesitar.
-Preste bem atenção - disse a outra prima. - Nós iremos cantar para você aprender.
A música era muito simples, logo aprendi e a estava repetindo por todos os lugares por onde eu passava:
"Fui no cemitério, tério, tério, tério
Era meia noite, noite, noite, noite
Vi uma caveira, veira, veira, veria
Era vagabunda, bunda, bunda, bunda."
Era interessante o modo como se dançava essa música tão "bonita". Com palmas e pulos para trás e para frente até o penúltimo verso todas as crianças da rua dançavam. E eu sempre no meio da folia, é claro. No último verso, o clímax da canção, todas viravam de costas umas para as outras e faziam um belo encontro de traseiros. Às vezes a trombada do encontro era tão forte que uma ou outra criança voltava chorando para casa de tanta dor nos fundilhos. Mesmo assim a festa não acabava enquanto a noite não caía rua adentro.
Eu era a mais inocente de toda a turma porque vivia a maior parte do tempo brincando sozinha em minha casa e não aprendia com tanta rapidez as coisas que as outras crianças sabiam. Estou dizendo isso porque não sabia o que poderia vir a ser uma caveira ou um esqueleto, eu não sabia também que quando as pessoas morriam elas viravam esqueletos assustadores. O pior de tudo é que, quando descobri o que era uma caveira, não parei de cantar a tal música. Foi então que tudo começou a acontecer.
Numa noite eu fui dormir pensando na caveira, pensando na história que a música contava, imaginei que eu estava no cemitério vendo a caveira vagabunda. A caveira nem era tão má assim e eu não tinha medo dela. Não me lembro da hora em que adormeci, mas lembro-me muito bem que durante a madrugada a caveira vagabunda fora à casa da minha vizinha enquanto eu estava lá tomando guaraná com a sua filha que tinha a mesma idade que eu.
A caveira era horrorosa e todos os que estavam na casa ficaram atemorizados com ela. Quando ela andava, sacudia os seus ossos e produzia um som muito esquisito. Ela era muito desengonçada, ficava abrindo e fechando a boca, batendo e rangendo os dentes, pulando feito um macaco alegre. Ela sorria para mim e eu chorava de medo, ela gostava de mim, mas eu a odiava e queria sair correndo dali para encontrar-me com a minha mãe. Eu tomava o guaraná para ver se amenizava o meu susto, mas a caveira não me dava sossego, ela queria o meu guaraná. Eu bem que tentei oferecer gelatina para a caveira, disse a ela que havia muitas gelatinas gostosas e coloridas na casa da minha vizinha e que eu a levaria até a cozinha para que ela escolhesse se queria comer a gelatina de morango ou a de limão (a minha vizinha fazia gelatinas de todas as cores e as colocava em copinhos descartáveis de café para dar às crianças). Tudo em vão... A caveira gostou mesmo de mim e queria o meu guaraná porque parecia o copo mais cheio e com o guaraná mais gostoso do mundo. Que medo, eu não conseguia me livrar da caveira de jeito nenhum.
Fiz mais uma tentativa. Disse à caveira vagabunda que na despensa da casa havia muitas garrafas de guaraná e que ela poderia escolher qual quisesse e levar embora, inclusive, poderia levar algumas garrafas a mais caso quisesse presentear suas amigas. Mas não deu certo. Foi quando, de repente, a caveira tomou o copo de guaraná da minha mão e começou a tomar o meu refrigerante muito rapidamente. Acontece que esqueleto nenhum tem aparelho digestivo e todos eles são vazados, não há nenhuma maneira de segurar o líquido dentro do corpo. Enquanto o líquido descia pela "garganta" da caveira era possível vê-lo e quando o líquido chegou ao seu "estômago" começou a cair pelo chão e a sujar toda a sala da casa da minha vizinha. Que cena de terror! A caveira sujou tudo e foi embora como se nada tivesse acontecido.
Acordei chorando de gritando de medo e, como dormia no quarto dos meus pais, eles acordaram assustados comigo. Contei à minha mãe que a caveira vagabunda fora visitar a casa da vizinha e tomara o meu guaraná que estava tão gostoso. A minha mãe então sorriu para mim e disse que tudo aquilo era um pesadelo e que não era verdade. Ela me abraçou e ficou comigo até que eu adormecesse novamente. Adormeci e quando acordei no outro dia, fui direto à cozinha pedir para a minha mãe um copo de guaraná. Fui, então, até o quintal e comecei a cantar com o copo na mão:
"Fui no cemitério, tério, tério, tério
Era meia noite, noite, noite, noite
Vi uma caveira, veira, veira, veria
Era vagabunda, bunda, bunda, bunda."
Eu queria ver a caveira vagabunda de verdade...