O ferro de Patty
A neurose extrai da alma da gente o último gole de paciência. Eu havia perdido toda a minha. Vivia ansiosa, tensa. Os movimentos repetitivos eram uma praxe.
Acho que estávamos na terceira semana de dezembro. Estava sozinha em Recife. Meus irmãos passavam as férias de final de ano com nossos pais, em União dos Palmares. O vestibular me obrigava a permanecer, devido aos grupos de estudos e às próprias provas. Restava-me a casa de tia Léa, para onde eu sempre me dirigia quando estava cansada de estudar ou sentindo-me muito sozinha.
-Vou passar ferro em sua roupa, Patty.
-Não, Maria, você pode ir. Eu mesma irei fazer esse serviço. Estudei muito hoje. Passar essa roupa a ferro será meu divertimento neste fim de manhã. Você está de folga. Basta retornar na segunda. À tardinha irei para a casa de tia Léa. Agora vá!
-Até segunda...
-Té.
Às vezes era bom ficar sozinha. Eu gostava do silêncio profundo. Na espreguiçadeira da saleta de estar, devorava livros e mais livros. Adorava os romances, principalmente os grossos, exigiam leituras rebuscadas.
Pus-me a passar ferro em duas calças compridas e três ou quatro blusas. Peças que sempre gostava de usar. Aquelas preferidas que todas as semanas usamos, lavamos e passamos. Quando terminei de passar a última delas, coloquei-as nos cabides, depois guardei-as no meu guarda-roupas do quarto. O ferro, como sempre, deixei-o esfriar, enrolei-o em sua própria fiação e guardei-o dentro do armário da copa. Como ainda era cedo, resolvi deitar-me um pouco, antes de ir até à casa da tia. Nem li mais nada; deitei, fechei os olhos e pronto.
Perto das três da tarde, sonhei que não havia desligado o ferro elétrico. Levantei-me apressada, nem calcei os chinelos, corri à copa e retirei o ferro do armário. Disse para mim mesma: ele está desligado; eu é que estou pirando. Guardei-o novamente.
Voltei a deitar-me. Com menos de dez minutos, minha neurose fez-me levantar e ir verificar se aquele mesmo ferro estava desligado. Procedi como na primeira vez: abri o armário, retirei-o, guardei-o novamente. Isso se repetiu, acredito, aproximadamente umas dez vezes. Não aguentando mais a angústia que tanta insegurança estava me causando, levantei-me de vez, fui ao banheiro, tomei um banho demorado, troquei de roupa e comecei a fechar toda a casa para poder ter-me com titia Léa. Depois de tudo, apanhei o primeiro ônibus que passou. Já havia andado uns dez quarteirões quando resolvi saltar. Pedi parada ao motorista e desci. Continuava a neurose a perturbar-me.
Retornei e abri toda a casa, porta por porta, fui à copa, retirei o ferro e reconfirmei que o mesmo estava desligado. Senti um calor horrível subir-me à face. Que fazer? Deixar de ir ver tia Léa? Nem pensar.
Tomei outro banho, vesti outra roupa, fechei porta a porta. Quando já só me faltava a porta principal, eis que me bateu novamente a tal dúvida e me perguntei: será que o ferro está ligado?
Não hesitei. Voltei à copa, retirei o ferro do armário, pus o mesmo numa sacola plástica, fiz um embrulho e levei-o comigo. Viajei tranquila. A insegurança havia sumido. Quando cheguei na casa de titia Léa, entrei, abracei-a e pus minha bolsa e a bendita sacola contendo o ferro empacotado. Provocou um barulhão sobre o vidro da mesa.
-O que é isso que você trouxe de tão duro nesse embrulho?
-Nada não, tia.
-Como nada?
-É um ferro!
-Ferro de quê?
-Ferro elétrico.
-Mas você sempre usou o nosso. Por que trouxe esse?
Passei a contar-lhe a comprida história que me havia acontecido. Ela gargalhou de minha insegurança e disse-me:
-Será que ele não está ainda ligado, Patty?
-Tia?
Eu não consegui deixar de abrir o pacote e pôr o dorso da mão direita na face inferior do ferro e poder confirmar que estava desligado. Após, inspirei fundo e ouvi dela.
-á está merecendo tratamento, ouviu?
-Está desligado, tia. Sosseguei.
-Mas você continua ligada, filha...
-É verdade. Nem noto.