A VIDA É TELA

Existes fora de mim. No meio da sala, enquanto o filme se projeta na tela, o coração bate em sintonia de vida e carinho. Imagino o sangue que corre nas veias, a respiração sem pressa, o ar respirado, o gesto de afeto desta presença que independe da minha... e de mim. Na tarde de quarta-feira, entre estrelas esboçadas e sol indo embora, o riso é a única coisa indispensável. Nada faz falta. A falta que faz não conta. O que se conta não se escreve nem ouve. Vivemos de existir a sós. De existir somente.
Quando a noite rebate no colchão e todas as luas pegam no sono, é a tua presença que fica no meio da sala, onde o filme foi projetado e o coração bateu suave e interminável. Posso até sentir o gosto d a carne, a textura dos ossos, dos músculos trabalhados enquanto as pedras iam sendo carregadas. Todas as sensações do mundo, independentemente da presença. Todas as sensações da existência tua, que passa sem que a minha seja tocada.
Na manhã de quinta-feira, resta o riso indispensável grudado no ar já respirado que te procura e não te acha. A falta, agora, faz de conta que não faz falta. Mas a vida que vivemos a sós comparece mareada no solo do dia seguinte. Existimos. Do outro lado do fio, na voz entrecortada por dúvidas e demoras. O coração bate. Isso é o que importa. Nada mais. E por mais que o desabafo soque o estômago da ternura pensada, a sensação de vida ultrapassa a da dor.
Na manhã nublada da quinta-feira, falta a paz do sorriso, o aviso de contraste suave entre a flor e o pássaro que pensa que é flor. Existes fo ra e longe de mim. Independes. És tudo o que há e o que não. O que está e esteve. O nada. Pleno de razão, de manhãs, de filmes projetados. E o coração bate. E, só por isso, a presença se enche de sangue nas veias e de mágica nas texturas do corpo que, outro dia, brincava de tocar.
Em tempo: Precisamos brincar de existir.

Publicado em A TARDE em 24/02/1999
Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 13/07/2008
Reeditado em 25/07/2008
Código do texto: T1078535
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