Recado da morte

Ele estava com o pé machucado. Aliás não era mais um pé, era uma bola de basquete, sobre a qual ele agora se apoiava em cima. Lá estava ele gargalhando as 03:00 horas da madrugada, com o pé “de molho”. E ria, ria... Gargalhava, como um bobo. Lembrava, o que acontecera há pouco.

Havia saido, com o intuito de fazer um bem. Tão altruista, queria fazer um bem a uma amiga que andava triste.

A tal amiga, andava com umas “idéias suicidas” na cabeça (tipico da juventude despropositada, ele pensava, detentora de uma revolta sem alvo, uma espécie de rebeldia que não tem mesmo um fim) então lá foi ele, garboso, resolver os problemas do mundo.

Na verdade a coisa não era tão simples.

A amiga tinha lá seus motivos os quais despejou sobre ele, impiedosamente, e estes o tocaram de fato. Lançou seus argumentos que bateram como água em rocha na fria tristeza fundamentada da menina, até que viu que pouco poderia fazer.

“Ensinou”, na mesma medida que aprendeu.

Não sabia se a tinha alcançado, se tinha atingido aquele ponto no qual se altera alguma coisa... aquele lugar no qual se determina “o que é, por que é, e como deve ser”. Não sabia e achava que não. As coisas que a menina lhe dissera haviam o sensibilizado, suas lágrimas o tocaram, e ele foi embora não sabendo se de fato ajudara com alguma coisa.

Mas tentara, o fez, esteve lá. Esteve lá, falando, escutando e bebendo.

Bebendo...

Alcool! O combustivel da sociedade.

Sempre presente, este amigo fiel nunca se roga a aparecer. Em qualquer lugar, se apresenta tão gentilmente... e é tão fácil o obter.

Ele é uma das forças que movem as engrenagens sociais. Criador de rodas de amigos “de sempre” (ainda que nem mesmo se conheçam), labareda de amores intermináveis (ainda que com hora definida pra acabar). Gerador de conversas realmente boas, inspirador de poesias, fator comum de aproximação de pessoas estranhas entre si, colabora com a ruina da maldita timidez humana, esta desprezível caracteristica, cerceadora de coisas interessantes...

Causador de desgraças mil... este é o nobre alcool.

E esta, é uma verdade tácita...

O alcool... é, de fato, o combustivel da sociedade.

Pois então ele bebeu enquanto a escutava e, ainda, na volta para casa depois de deixar a menina, parou em um barzinho perto da casa dela. Ainda pensava nela e nas suas coisas quando tomou a primeira...

Então a segunda, a terceira, a quarta garrafa.

Aí, já não pensava mais... afinal, estava triste, e enxergava motivos para beber e refletir.

Quinta, sexta, sétima...

Era hora de ir embora... estava de moto. Estar de moto não é brincadeira. O “estar de moto” é um passo para um hospital, ou para um cemitério, para alguns individuos. O “estar de moto” não deve ser desconsiderado por um bêbado. Grande erro.

Mas não fora direto pra casa, ainda não. Resolveu parar em um posto de gasolina, naquelas lojinhas de conveniência, 24 horas. Tomou mais uma ou duas cervejas (ou três, ou quatro, não se sabia mais), conversando com um boêmio (só um boêmio pode estar num lugar desses, em plena madrugada de uma segunda feira) que ali conhecera. Divagaram sobre coisas diversas, discutiram a estupidez de todas as coisas do mundo, as injustiças das mulheres, a incoerência dos amores e o papel triste da poesia, essa soberba criadora de ilusões (um dos dois a definiu assim), nisso tudo.

-Bem, vou pra casa.- Pensou, finalmente. Amanhã é outro dia.

Talvez fosse tarde demais.

Ao sentar na grande máquina sentiu-a como uma extensão de si próprio, como se os dois fossem um só. Deu a partida, o ronco maravilhoso do motor o invadiu trazendo-lhe felicidade e uma espécie de poder. Essa relação “homem X máquina”, subjetiva e abstrata, mas tão real como um legitimo caso de amor. Saiu.

Na primeira curva do trajeto a qual quis fazer meio deitado, esportivamente, acabou deitado literalmente. Foi ao chão, o asfalto frio lhe tocou as partes descobertas do corpo desgastando a pele, raspando, ferindo, e a grande moto caiu sobre seu corpo, lhe esmagando o pé. Fora traído por sua amante de aço.

Ainda no chão, riu de sua própria idiotice. Riu pois a verdade do que havia acontecido, o por que de estar agora ali no chão, em uma madrugada de uma segunda feira desolada, se escancarou totalmente a sua frente. Sussurava-lhe nos ouvidos, e era a própria voz da morte:

- Você é um idiota, meu caro inconsequente. Você é um tolo, e nem toda a poesia que possa existir nesse mundo justifica sua estupidez. Mas por favor vá, continue assim, pois é exatamente essa sua despreocupação negligente, sua pressa, sua ânsia de viver, que o aproximará cada vez mais de mim. Continue assim, meu caro poeta, que logo o tomarei nos meus braços, com todo o amor que tenho por ti.

E, com as risadas da morte misturadas às suas, levantou-se do chão.

Ergueu a moto, deu a partida no motor e foi pra casa.

Já não pensava mais nos problemas da menina,embora soubesse que suas palavras retornariam a sua mente mais cedo ou mais tarde. Agora ele apenas pensava no ocorrido, sentia seu apreço pela vida e por todas as coisas boas, renovar-se dentro de si. Então, na segurança de seu quarto, com a sobriedade expulsando-lhe a embriaguez, com o pé inchado esticado sobre a cama e com as palavras da morte ressoando em sua mente, pôs-se a escrever sobre o que havia acontecido.