A ÚLTIMA LIÇÃO DE AMOR



Não era um dia qualquer na minha vida. Eu já estava com sessenta e oito anos, há uns dez anos separada daquele traste, tinha andado por todo canto, dançado muito nos bailes e nada de encontrar alguém pra não terminar meus dias sozinha, roendo beira de pinico. Minha aposentadoria mal dava pra pagar medicamentos e o supermercado. Alguma coisinha que toda mulher gosta de comprar, eu ganhava da minha filha, ainda bem que havia ela. É verdade que ela se juntara com a Jucileide, a moça da farmácia, mas que fazer? Melhor que ser puta que nem a filha da minha vizinha, aquela biscate. Por isso esta era uma chance única, eu encontrara um velho com um vida confortável, boa casa, boas roupas, e de uma aparência que nem mostrava estar pelos setenta e cinco. Ah, agora seria a minha última tentativa... 

Escolhi um vestido bonito, seda estampada, nada de muito decote para não passar por desfrutável, mas um tecido que se moldava bem ao corpo, escondendo e difarçando o estado geral um tanto deficiente de carnes, mas qual, homem era tudo igual, via um rabo de saia balançando ao vento e já ficava assanhado, o resto era por conta da quase cegueira do meu candidato e da minha esperteza de mulher. Muito perfume para criar um clima, batom vermelho além dos contornos dos lábios meio murchos, um adoçar na voz, um toque sutil com as mãos e ... lá me fui pra casa dele, levando um bolo bem gostoso para o nosso chá da tarde.

Bati à porta e ele veio arrastando os chinelos, pude ouvir e pensei comigo que até que era bom ouvir qualquer coisa que denunciasse a presença de alguém, e não somente o tique-taque do relógio na parede da minha casa, enquanto os dedos se moviam nas agulhas e na lã do tricô e a alma fugia pelas frestas da solidão.

- Boa tarde, Amélia, falou o Rubão., logo que a porta se abriu.

Seu nome era Rubem e ele era aposentado da CEEE, antiga Companhia Estadual de Energia Elétrica. Sorriu e me convidou pra entrar. Cumprimentei dando dois beijinhos, e aproveitei para demorar um pouco falando assim de pertinho. Ele percebeu e passou a mão de leve no meu rosto, sorrindo e piscando o olho. Falavam na cidade que ele tinha sido um homem muito divertido, que sua esposa suportara as suas malandragens e sofrera muito. Mas ela tinha os filhos e ninguém naquela época, em seu juízo perfeito, ia querer virar mulher separada. E viver do quê? E aguentar o falatório? Mas ele, pelo menos, era uma pessoa educada, decerto que nunca bateu nela que nem o meu traste. Eu apanhei durante anos, tinha até hora certa e já sabia quando ia levar pancada só pelo modo dele abrir a porta e abrir a boca pra me falar a primeira amabilidade. Tivemos dois filhos que viviam assustados e levando corridão daquele pai desnaturado. Eu fazia tudo para ele, deixava a casa limpa e ai que ele encontrasse uma poeira na mesa. Ia passando o dedo e erguendo olhava pra mim e gritava: 

- E tu, então, não limpa mais a casa?? Deixa tudo numa imundície que só vendo! 

Verdade que ele era muito caprichoso. Não, isso não dá pra reclamar. No verão tomava banho e trocava de roupa duas vezes por dia. Ah, mas se o almoço não fosse pra mesa às onze e meia em ponto, ele pegava a comida toda e jogava pela janela. Eu fazia tudo pra estar pronta a tempo, mas umas duas ou três vezes meu feijão com costelas de porco foi parar no canteiro de margaridas ou contra o muro formando um desenho surreal, e aí o meu cachorro Lilico é que fazia a festa onde sempre comparecia alguma mosca zumbizenta pra completar o quadro desolador. 

Sentei numa poltrona diante do Rubão, na sua cadeira de balanço forrada com almofadas. 

- Sabe, disse-me ele, eu to mesmo gostando de conversar contigo, viu Amélia? 

Eu me senti nas nuvens e sorrindo fiz de conta que ficava um tanto constrangida, afinal não caía bem ir logo se jogando pra cima dele.

-Pois é, continuou, eu acho que deviamos conversar um pouco então sobre como seria caso você resolvesse casar comigo. Na verdade, nós já estamos muito velhos pra essa coisa de casamento e a gente podia fazer assim um almoço com os filhos e algum vizinho só pra dar uma satisfação né?

Surgiu na minha mente a casa cheia e a minha filha entrando abraçada com a Jucileide, o meu filho com aquela mulher que acho que ele juntou na zona, sei lá aonde foi buscar tal tipa toda arreganhada sempre com uns vestidos muito curtos e colados, um decotão enorme e a alça do sutíã vermelho aparecendo impávidamente sob o vestido de outra cor. Será que ela não tem lingerie cor da pele? 

- Não é? repetiu ele enquanto eu caía das nuvens da minha distração e fazia que sim sem muita convicção...

- Que é, não gostou da idéia, Amelinha?

- Não, sim, sim, gostei ora... claro Rubem, gostei muito...

O som do apito da chaleira avisou que a água do chá fervera e fomos pra cozinha. Arrumei a mesa tentando mostrar minha agilidade na tarefa, vendo as xícaras e cortando o bolo em fatias. Tinha que impressionar bem, mesmo já contando que ele tinha empregada doméstica e eu viveria no bem bom, só dando ordens como uma patroa rica. Ao acordar, com uma camisola longa e rendada, ela trazendo o café na cama  e eu só dando ordens, ah, isso sim é que era aposentadoria. Afianal, se ele podia pagar por que não? Já tinha me cansado de ser burro de carga por tanto tempo. É verdade que nos últimos dez anos, livre do encosto do meu marido, eu tievera um período bem folgado, a não ser quando meus fihos resolviam acampar lá em casa. Aí aquelas duas, a Jucileide e a espevitada da mulher do meu filho empurravam o prato e se iam pra sala e eu que me virasse a lavar louça e limpar tudo. Ah, mas isso ia acabar, agora sim, eu teria uma vida melhor e ainda um marido pra passear pela cidade. Aquela Dona Jo da confeitaria ia ter que calar a boca de gralha sempre a agourar  e dizer que na nossa idade, nossa idade?? Ela tinha quase oitenta... que disparate!

Comemos em silêncio e de repente o Rubão, passando o guardanapo de um lado pra outro sobre a boca larga olhou direto pra mim e falou:

-Amélia, preciso te falar alguma coisa, afinal se nós vamos morar juntos nesta casa, vamos dormir na mesma cama como marido e mulher, compreendes, eu queria te dizer...
 
Aí ele deu uma paradinha parecendo ficar em dúvida:

- Continua, Rubem, pode falar, eu estou atenta.

-  Eu   tenho que te dizer  que...  às vezes...
 eu falho... compreendes?

- Siiimmm...Não se preocupe... afinal...

Um silêncio se fez por uns instantes e ele recomeçou:

- E agora que tu vens morar aqui em casa , compreendes, eu... mandei a empregada embora!!!

- ????

Senti minhas pernas amolecerem, um súbito tremor percorreu meu corpo, um suor frio sobre a pele...Ele então completou a desgraceira comunicando: 

- E vou trazer minha irmã que mora sozinha pra morar aqui, ela  precisa de alguns cuidados,já está velhinha, oitenta e tantos anos,  compreendes?

- ????

- Bem, mas tu pareces um pouco pálida, o que foi Amelinha? Ah, tá muito quente não é?

- Nnaããooo, não é isso... é... bem... eu lembrei, sabe? ... eu lembrei que.... deixei uma panela
no fogão e eu vou correeeeenndo pra casa... porque senão... pode incendiar tudoooo....!!!!

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 09/07/2008
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