O bicho mais estranho do mundo

O bicho mais estranho do mundo

Meu nome é Serevaldo, mas me chamam de Neto, deve ser porque ninguém acerta o meu nome, uns me chamam de Everaldo ou Resevaldo, desse jeito, me chamem de Neto, que eu atendo. Eu tenho 10 anos, moro numa favela em Aracaju, com os meus pais, sou filho único, coisa que não é normal no lugar onde vivo, já que os meus vizinhos quando a televisão queima, procuram logo encomendar mais um bebê. Nessa brincadeira, Dona Marilda, minha vizinha de frente, já tem uma dúzia! Muitas pessoas acham que eles não são felizes, mas “seu Jairo”, o esposo dela, fica todo sorridente quando diz que dá para montar um time de futebol e ainda sobra um reserva. Ele só fica um pouco triste quando sai para pescar e volta sem nenhum peixinho, os filhos choram muito pedindo comida, nessa hora eu prefiro assistir a televisão, pois só tenho 10 anos e não posso fazer nada por eles.

Estudo no colégio público perto da minha casa, o Governo construiu recentemente, antes eu tinha que caminhar uma hora para chegar no colégio mais próximo, me dava uma preguiça, mas minha mãe não deixava eu desistir e para me incentivar, me prometia um geladinho, como eu não resistia a um, ia correndo para o colégio.

Certa vez, na aula de ciências a professora pediu para que cada um da turma trouxesse o bicho mais estranho do mundo, eu achei um absurdo, o mundo era muito grande, mas não abrir minha bendita boca para dizer nada, já que eu era apaixonado por ela, aquilo sim era professora, principalmente quando ela soltava o cabelo e ele ficava enganchando na boca dela e melava ele com aquele batom vermelho... Mas, voltando ao bicho estranho, nesse dia eu fui para casa pensativo, qual bicho eu levaria? Minha mãe não deixava eu ir muito longe, só de casa para o colégio e do colégio para casa, ela tinha medo da violência e das más amizades.

Eu tinha que fazer algo, eu não podia tirar zero naquela professora, ou melhor, naquela matéria, o desespero já estava subindo para a minha cabeça, quando decidi tirar esse peso dela jogando bola. Comecei a bater bola perto do viveiro de passarinhos do meu pai, ou melhor, no viveiro, que é muito grande, feito de madeira e tela de aço, as madeiras de um lado e do outro fazem um formato de uma trave de futebol, então eu chutava naquela direção tentando fazer gol.

A cada chute os passarinhos se espantavam voando, coisa que era normal todo passarinho voa, foi ai que a minha teoria foi por água abaixo, eu percebi que cada vez que batia a bola no viveiro, todos os passarinhos voavam, menos um, ele parecia com um pombo, mas tinha o bico mais longo e a sua cor era diferente de qualquer outro pombo que eu já tenha visto, era um preto misturado com cinza e branco, eu sei que o que me chamou a atenção não foi a cor dele, ou qualquer outra característica, mas o porque que ele não voava.

Fui até minha mãe e perguntei por que aquele pássaro não voava, até então, eu já estava me imaginando levando aquela ave para a aula de ciências e tirando um dez, por ter levado uma ave que não voa, poderia existir um bicho mais estranho que esse? Eu achava que não. Até minha mãe me dar a resposta. Fiquei muito triste quando ela disse que o bicho não voava porque meu pai deu um tiro na asa dele, já que era uma ave rara, ele queria ter presa em casa para mostrar aos amigos que era um grande caçador de aves raras. Com uma dessa eu fui dormir, sem ao menos jantar de tanto desgosto que tive do meu pai.

Ao acordar no dia seguinte, tive uma grande idéia e comecei a brincar de detetive perseguindo o meu velho para todos os lugares, mas é claro da casa, minha mãe não deixava eu sair. Aproveitando que era um dia de sábado e eu não iria para a escola fiquei de longe espreitando, mas ele saiu cedo e só voltou perto de meio-dia. Foi quando peguei um papel e um lápis, sentei no chão da sala e comecei a observar e a escrever, ele me via escrevendo, mas achava que eu estava fazendo o dever de casa, mal sabia ele o que estava por vir.

Quando minha mão já não agüentava mais escrever decidi parar, já era dez da noite, eu tinha escrito cinco folhas, agora seria a hora de descansar, pois o domingo seria de mais trabalho, o de resumir aquelas cinco folhas e transformar em uma. Para mim que sou aluno da quarta série do ensino fundamental, foi muito difícil, tanto que só acabei sete da noite o meu resumo, eu estava praticamente morto e com muita fome, mas aquilo parecia valer a pena.

No dia seguinte, acordei bem cedo e fui acordar o meu pai, e disse que ele estava sendo convocado a comparecer no colégio, pois a professora queria ter uma conversa muito séria com ele e que eu só poderia assistir à aula dela depois da conversa dos dois. O meu pai esbugalhou os olhos, saltou da cama já me prometendo uma surra se eu tivesse aprontado alguma coisa, eu abaixei a cabeça e fiquei em silêncio.

Chegando na escola, todos os garotos estavam com os seus animais na mão, era o dia da mostra dos animais estranhos. O engraçado, é que todos olhavam para mim com um ar de riso, já que eu não tinha nenhum animal nas mãos e ainda havia levado o meu pai, acho que eles pensaram que o meu pai iria tentar justificar, o porque de eu não ter conseguido um animal estranho, mal sabiam eles que meu pai não iria justificar nada, mas seria a justificativa viva de tudo.

Quando eu avistei a professora na sala, minha barriga gelou e eu tinha certeza que não tinha sido por causa do geladinho de ontem, mas o medo, esse que eu tinha que vencer, o medo em que eu apostei tudo, senão tiraria zero na matéria da professora mais linda do mundo.

Entrei com o meu pai na sala e apresentei a professora, ela com uma cara de quem não estava entendendo nada, olhou para mim e perguntou se o meu pai queria falar com ela. Eu disse que não e que ele só estava fazendo questão de assistir a mostra, pois gostava muito de animais, ainda bem que ela não sabia do tiro que ele deu no pássaro, se não me chamaria de mentiroso. Então ela pediu que ele sentasse um pouco, ele deve ter pensado que ela estava pedindo para ele esperar um momento que ela já iria falar com ele.

Quando o meu pai sentou corri até a professora e pedi para ser o primeiro a apresentar o meu bicho, ela concordou, então me tremendo todo tirei do bolso uma folha de papel toda amassada, estava ali o meu resumo, então comecei a ler:

O meu pai é pescador, tem 28 anos, mora comigo e minha mãe num casinha bem humilde, mas paga todo o sábado cerveja para os amigos, enquanto assisti ao futebol na TV. Segundo minha mãe ele tem outra, pois sai para pescar, volta sem peixe, bêbado e com um perfume de mulher no pescoço, então ele da um leve empurrão nela e diz que não vai comer aquela porcaria que ela está preparando. Então, revoltado, ele quebra tudo dentro de casa, quer dizer, o que tem na casa, minha mãe diz que ele está virando um bicho do mato, ele diz que vai se mudar, mas nunca arruma a mala, fala a cada minuto que só não deixa ela porque não tem para onde ir. Em seguida, liga o som bem alto numas músicas que falam de rapariga e “gáia”, começa a chorar e a vomitar a casa toda, e minha mãe tem que lavar a casa toda chorando. Então, ele vai dormir, quando acorda, vai para a rua novamente, mas antes leva as últimas laranjas do suco numa sacola, escondido da minha mãe. Quando ele volta começa a gritar bem alto que ama a minha mãe, toma algumas quedas e vai dormir. Eu até não ligaria para isso tudo, se ele não tivesse dado um tiro na asa do passarinho que ele mantém trancafiado no viveiro de lá de casa. Para mim o meu pai é o bicho mais estranho do mundo.

Quando olhei em minha volta o meu pai estava de cabeça baixa, minha professora com lágrimas nos olhos e os meus colegas com a mão no queixo. Acho que vou tirar dez.

Igor Ribeiro

Igor Cruz
Enviado por Igor Cruz em 09/07/2008
Reeditado em 06/04/2009
Código do texto: T1071967
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